por Octavio Carvalho Aragão Júnior
(originalmente publicado na revista Arte/Ensaios)
Partido dos Trabalhadores: rumo à presidência
Para os brasileiros e os habitantes da cidade do Rio de Janeiro, o dia 28 de outubro de 2002 não era um dia qualquer. Os jornais apontaram as eleições da véspera, que elegeram Luís Inácio Lula da Silva, candidato do Partido dos Trabalhadores à Presidência da República depois de três tentativas, como um recorde: mais de 52 milhões de votos (61,3%) contra 33 milhões para seu adversário José Serra (38,7%), do PSDB [1]. A relevância do resultado para os cariocas era grande, já que o estado do Rio de Janeiro deu 79% de seus votos ao candidato. [2]
A postura menos conservadora não é atípica no Rio de Janeiro. Trata-se da cidade que, além de já ter sido capital do Império e da República brasileira até 1960, originou inúmeras transformações sociopolíticas que repercutiram em todo o território nacional, graças à força de uma imprensa que servia de referencial para o país. Uma das manifestações mais fortes e originais dessa imprensa é a charge política, pela qual artistas que vão de Araújo Porto-Alegre a Chico Caruso criam um panorama satírico da situação nacional desde 1839, quando a oficina de Victor Larée imprimiu a estampa considerada a primeira charge do Brasil. [3]
Tomando Porto-Alegre como base, podemos afirmar que se criou a tradição de humor gráfico no jornalismo brasileiro a partir da crítica política. Citando Hobsbawn, “por tradição inventada entende-se um conjunto de regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica; visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado” [4].
A instituição da charge deu continuidade ao costume da crítica política e cedeu-lhe foco e identidade por meio da estrutura do desenho, calcado originalmente nos artistas da escola francesa, canalizou o gosto do público de maneira democrática, pelo riso.
A caricatura política, a caricatura revolucinária e ainda a de costumes, muita vez têm por objetivo expressar simbolicamente (símbolo popular) a grande verdade das coisas, procurando fazer com que nada falte à expressão dessa grande verdade. E o riso que essa caricatura provoca nas multidões não é produto do absurdo da sua representação, da sua falta de lógica, de grande aparência. O risível brota do desenho na medida em que esclarece ao mesmo tempo a aparência das personagens, das coisas, dos gestos afetados, das atividades dos homens públicos que ‘vieram a mandado da Providência’, e a verdadeira significação, a verdade que se oculta através dêsses gestos, dessas atividades e aparências. Quero dizer que a caricatura revolucionária mostra, na maioria dos casos, uma dupla realidade simultânea: a que as ‘classes dirigentes’ querem que sejam os homens e as coisas da sociedade aos olhos do vulgo, e o que são na realidade: eis aí o cômico da caricatura política. É este o motivo pelo qual são bem recebidas as caricaturas políticas pelas classes populares, que vêem destruídos e ridicularizados por meio delas as coisas de aparência mais sagrada e dogmática da sociedade que as oprime e explora, e porque, ademais, educam o seu espírito na luta contra os homens e instituições das classes dominantes”. [6]
Porém, diante dessa afirmativa do crítico Francisco Carreno, poder-se-ia mensurar a representatividade política da charge carioca? Seria ela forte a ponto de possibilitar uma leitura das aspirações da população diante da eleição de um presidente da república como Luís Inácio Lula da Silva? Cremos que sim, partindo do princípio de que há uma identidade regional no chargista. Segundo Angeli, “o humor paulista é diferente do carioca. É mais direto, mais sério. O carioca belisca a bunda do alvo e o paulista acerta.” [7]
Há registros da percepção dessa diferença entre a charge carioca e a paulistana, tanto nas palavras de Angeli quanto nas de Millôr Fernandes em entrevistas, mas nenhum estabelece parâmetros claros.
Moldando aspectos
Veterano de três disputas presidenciais, o candidato Luis Inácio Lula da Silva sofreu verdadeira transformação ao se preparar para as eleições de 2002. Levando-se em consideração que “ser uma determinada espécie de pessoa por conseguinte não consiste meramente em possuir os atributos necessários, mas também em manter os padrões de conduta e aparência que o grupo social do indivíduo associa a ele” [8] o processo pretendia moldar os aspectos visuais – vestuário, corte de cabelo, barba – e comunicacionais – modulação de voz, expressões faciais e gestuais – para agradar aos mais conservadores que aparentemente rejeitavam as características anteriores do candidato.
Deixando de lado a austeridade, o cenho franzido e o tom agressivo, marcas de seu início de carreira política oriunda dos movimentos sindicais – quando foi eleito presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do Brasil, em 1975 –, Luis Inácio Lula da Silva foi apelidado de Lulinha Paz e Amor, passando a encarnar um personagem mais leve, com discursos de tom moderador, e tornando-se alvo de vários chargistas, que viam nisso a oportunidade de, ao contrapor as duas imagens, o Lula contestador e o Lula contemporizador, refletir a realidade social vigente.
Segundo Erwin Goffman, a construção de papéis individuais é indispensável para a interação e convivência sociais, pois estabelece parâmetros comportamentais adequados para o grupo por meio da definição de características facilmente identificáveis. A informação a respeito do indivíduo serve para definir a situação, tornando os outros capazes de conhecer antecipadamente o que ele esperará deles e o que dele podem esperar.
Tomando por base a nova expressividade de Lula – seja ela uma atividade transmissora ou emissora –, os eleitores aplicariam sobre ele estereótipos baseados na conduta e, principalmente, na nova aparência. A expressividade transmissora abrangeria os símbolos verbais e correlatos que são utilizados conscientemente e com objetivo direcionado (comunicação no sentido tradicional e estrito); a emissora envolveria uma série de ações que podem ser interpretadas pelos interlocutores como sintomáticas do indivíduo.
Em resumo, nas charges aqui representadas relativas ao presidente Lula, a princípio, o objetivo dos autores seria a descoberta dos minúsculos contratempos – sejam físicos, psicológicos ou dramáticos – que quebrariam a ilusão de realidade criada pela representação dos indivíduos, ou seja, descobrir as representações falsas, as mentiras e mistificações. Porém, os artifícios a disposição dos políticos, alvos tradicionais dos humoristas, poderiam, ainda de acordo com Goffman, reverter a espectativa de demolição da fachada em prol de si próprios, transformando o ataque original num mero objeto de riso, assim reduzindo a importância do fato e, em conseqüência, mantendo o status quo.
A charge desconstruindo premissas
Analisando uma charge de Kemp publicada no Almanaque do Pasquim 21, podemos perceber como os chargistas elaboram uma complexa estrutura de interpretações baseada nas expressividades das figuras públicas. Nela, vemos Lula trajando roupas informais (sandálias, bermudas e camisa florida que remetem ao movimento flower-power dos anos 60) e um medalhão com uma estrela (símbolo do Partido dos Trabalhadores) de pé sobre os outros candidatos à presidência, Ciro Gomes, José Serra e Anthony Garotinho. A vestimenta de Lula contrasta com os ternos dos outros personagens e representaria uma diferenciação de intenções, ou seja, pelas roupas percebe-se o despojamento por parte de Lula, que buscaria maior identificação com o público – ou ainda podemos interpretar suas roupas como as de um turista, alguém que está “do lado de fora”. Como elemento de ligação com o “antigo” Lula, fica a imagem do charuto, representativa de suas origens e afinidades com a ideologia de Fidel Castro. Esse é um Lula em processo de transformação.
Representativo de uma atividade transmissora, surge o balão de fala com a frase “Paz e amor”, em que se afirmam as intenções do indivíduo, e por atividade emissora há a mão em riste com a palma voltada para frente, gesto universal de paz. As duas são, porém, passíveis de questionamento ou negação posterior, já que se estabelece uma contradição na imagem (um pacifista jamais “esmagaria sob os pés” seus oponentes).
Há clara sugestão de que o “personagem” Lula tem consciência de uma mudança de imagem e se deixa moldar por aqueles responsáveis pelo marketing político. Assim, na charge, o gestual representativo de paz implicaria fraude, e o texto “Paz e amor”, dissimulação. [9]
Em qualquer tipo de comunicação, ampla ou estrita, a atitude do personagem Lula teria inicialmente caráter promissório, e qualquer relação que viesse em seguida seria baseada em inferências de ambas as partes. Por inferência, pode-se compreender a confiança que nortearia a relação entre os eleitores e o candidato, mas a charge desconstrói essa premissa, esclarecendo uma suposta fraude e dissimulação subjacente. A inferência entre o político [10] e o público, pelo filtro do chargista, é não apenas explicitada, mas também questionada, e é dessa tensão que nasce o humor.
Essa charge de Kemp, em retrospecto, pode ser analisada como antecipação visual das transformações paradoxais e incongruências do Governo Lula em seu primeiro mandato, como aponta o sociólogo Ricardo Antunes, especialista no estudo das mudanças no mundo do trabalho:
Durante muito tempo, muitos movimentos sindicais e sociais iludiram-se com relação ao caráter do Governo Lula e agora estão vendo que a conta ficou feia. O PT dizia que era contra os trangênicos, o Lula liberou os trangênicos. O Lula nunca disse que ia fazer reforma da Previdência e iniciou a privatização da Previdência pública no Brasil. O Brasil nnca teve a tradição de intervenção militar e enviou tropas para o Haiti. O Brasil dizia que ia oferecer um modelo alternativo ao FMI e o FMI cita o Brasil como modelo bem-sucedido. Quer dizer, alguma coisa está errada. [11]
Mantendo as aparências por meio do humor contestatório
No cotidiano, as primeiras impressões são extremamente importantes e incluem a percepção da necessidade de se “começar com o pé direito” qualquer empreendimento. A quebra do acordo da “primeira impressão” por meio de fatos ou atitudes que contradigam o inicialmente postulado – pode resultar em crise fatal para a relação, gerando o colapso do sistema social, pois há dois princípios que norteiam a organização de uma sociedade: qualquer indivíduo que possua certas características sociais tem o direito de esperar tratamento e valorização adequados por parte de outros, e, em contrapartida, um indivíduo que dê a entender que possui certas características sociais deve de fato ser o que aparenta.
Como a quebra desses postulados é o fim inexorável da relação social, existem práticas preventivas que evitariam tais embaraços. Se o indivíduo lança mão dessas estratégias para proteger suas próprias projeções, estaria trabalhando “práticas defensivas”; se qualquer participante busca salvar a definição situacional projetada por outro, estaríamos diante de “práticas protetoras” ou “diplomacia”. Em conjunto, tais práticas funcionartiam para “manter as aparências”, ou seja, continuar a impressão inicial forjada por um indivíduo durante o período em que está diante de outros.
Além das salvaguardas, as “práticas”, os grupos podem apelar para jogos e contos folclóricos que visem expressar uma “moral” como meios para evitar constrangimentos, recordando ocasiões em que determinados consensos operacionais foram quebrados. Tais anedotas, mitos ou fantasias têm função catártica e permitem ao grupo rir de seus problemas passados enquanto reafirmam a necessidade da manutenção do status quo. É aqui que se pode questionar a função contestadora da charge, pois, ao fazer a população rir de seus problemas recorrentes, o humorista gráfico correria o risco de esvaziar a importância dos fatos, tornando-os mais palatáveis, mais aceitáveis, mais leves e, em decorrência, afastaria a possibilidade de solução. “(...) A zombaria política generalizada, longe de desembocar na subversão, acaba contribuindo para banalizar as práticas que denuncia. Os meios políticos conseguem exterminar o cômico, tornando-se eles próprios cômicos.” [12]
Em entrevista recente, Angeli aponta para uma possível crise em seu trabalho, relacionada às dúvidas a respeito de sua importância real como elemento questionador, e não mais uma engrenagem do sistema:
Uma vez eu estava procurando uma cara do Delfin Netto para ilustrar uma coluna de humor e achei uma foto dele com uma charge do Chico Caruso emoldurada. Por que um cara emoldura uma charge que lhe é crítica? Ou foi porque a charge não funcionou ou porque ele é mais inteligente que o cartunista e reverteu a situação a seu favor. (...) Quando olhei aquilo, comecei a analisar as minhas charges e pensei: porra, estão parcendo bonequinhos engraçadinhos. [13]
Grotesca política imagética
Acreditamos que existam duas escolas de charge no Brasil: a cartunesca, que mescla narrativa de histórias em quadrinhos e caricaturas, com teor mais dinâmico; e a portrait-charge, que privilegia a caricatura, geralmente acompanhada de texto-legenda. Historicamente, a charge produzida no Rio de Janeiro por Ique, Chico Caruso ou Erthal é a segunda – descendente dos trabalhos de Angelo Agostini, Henrique Fleiuss e Raphael Bordallo, no século 19, enquanto São Paulo abriga artistas mais identificados com a primeira vertente, como Paulo Caruso, Angeli, Glauco e Laerte. Há chargistas que ficam no meio termo, como Aroeira, e ainda exceções, como Jaguar e Millôr, que produzem charge-cartum no Rio de Janeiro. [14]
A charge, em relação ao leitor, simboliza a coesão social ao ridicularizar as figuras públicas por meio da caricatura. Ela faz com que os famosos, políticos ou não, desçam de seu pedestal e se aproximem do homem comum.
Completando, se atestarmos as declarações de Chico Caruso, Aroeira e Ique, o chargista brasileiro crê que seu propósito principal é a socialização. Por instituir na sociedade a tradição da dessacralização diária de seus governantes e demais celebridades nas páginas dos jornais, pode-se concluir que as charges políticas constituiriam parte de um processo não apenas de conscientização política, mas de diálogo do público, – que tem sua voz e idéias percebidas, assumidas e reproduzidas pelos artistas –, com o poder instituído.
É digno de nota que, de todas as charges publicadas nos principais jornais do Rio de Janeiro no dia seguinte à eleição, apenas uma, do jornal Extra, de autoria de Marco Paz, retratasse o presidente Luis Inácio Lula da Silva e, mesmo assim, em situação de vitória sobre as intempéries, enquanto duas deram destaque ao dilema do derrotado José Serra (uma de O Globo, por Chico Caruso, e outra do Extra, por Leonardo).
Eis como as charges políticas publicadas na imprensa carioca poderiam ser relacionadas com o comportamento do público numa via de mão dupla em que leitores e artistas são referência e inspiração, num espelho gráfico no qual todos os dias, num ritual particular, cada habitante do Rio de Janeiro e, por extensão, cada brasileiro, tem um encontro consigo mesmo, nas páginas dos jornais.
***
NOTAS:
1 – Extra. Lula é Presidente, in Extra. Número 1658, Rio de Janeiro – 28 de outubro de 2002. 2ª edição. 1ª página.
2 – O Dia. Lula enfim lá e PT saudações, in O Dia. Número 18.400, Rio de Janeiro – 28 de outubro de 2002. 1ª página
3 – Lima, Herman. História da Caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Oympio Editora, 1963 – volume 2, 1ª edição. Pág 723
4 – Hobsbawn, Eric. Introdução: a invenção das tradições, in A Invenção das Tradições. São Paulo, Editora Paz & Terra, 2002 – 3ª edição Pág 9
5 – “(...) Digna de nota é, igualmente, a classe dessas gravuras, firmando-se o gênero desde o início numa alta expressão artística, a trazer, da maneira mais frisante, o sinete da charge francesa que seria a constante mais expressiva da caricatura brasileira em todos os tempos.
A principal característica dessa procedência está na clareza do desenho que tende a dizer tudo, numa linguagem plástica suficiente por si só, pela síntese e pelo sentido, independente da legenda, o que nos faculta exemplares da mais bela expressão artística.” Lima, Herman.. OpCit. Pág 171
6 – Carreno, Eduardo. In Lima, Herman. OpCit. Pág 178
7 – Angeli. Entrevista. In Playboy, a revista do homem, edição 375. São Paulo: Editora Abril, 2006. Pág 70
8 – Goffman, Erwin. A representação do Eu na vida cotidiana. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, 8ª edição. Pág 120
9 – _____________. OpCit. Pág 85
10 – “Que entendemos por ‘política’? (...) Por política entenderemos tão-somente a direção do grupamento político hoje denominado ‘Estado’ou a influência que se exerce nesse sentido”. Webber, Max. A política como vocação. In Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002. Pág.. 59
11 – Antunes, Ricardo. Trabalho X Capital: “berrar não adianta”, entrevista a SASSI, Juliana. In Caros Amigos. São Paulo: Editora Casa Amarela, ano X, número 120, março de 2007. Pág. 20
12 – Minois, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: Editora UNESP, 2003, 1ª edição. Pág. 596
13 – Angeli. OpCit. Pág 70
14 – Aroeira. In Aragão, Octavio. A Óptica Sócio-Política da Arte Seqüencial de Angelo Agostini em algumas das Páginas de O Cabrião (1866-1867) e da Revista Illustrada (1876-1898). Rio de Janeiro: Dissertação para o programa de pós-graduação em artes visuais, 2002. Pág. 152
LEGENDAS DAS IMAGENS:
[Ilustração 1]
Araújo Porto-Alegre.
Charge. 1839
Fonte: Lima, Herman. História da Caricatura no Brasil, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1963
[Ilustração 2]
Kacio.
Charge. 2003
Fonte: Kacio. Um Ano Cheio de Graça, Brasília: Fundação Assis Chateubriand, 2003
[Ilustração 3]
Kemp
Charge. 2002
Fonte: Kemp. O Pasquim 21, Rio de Janeiro: Gampz Publicações, 2004
3 comentários:
Rapaz,
Nem sabia que tinhas este blog aqui.
Acompanharei. Inclusive linkei lá no meu. Já viste?
Ontem fui no lançamento da Luneta Mágica do Patati.
Opa, Café!
Bem-vindo a este novo/velho blog.
Como foi o lançamento do Patati? Cheio?
Acho que esse artigo foi republicado , pois ele me parece familiar !
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