Em 1987, como toda minha geração, creio, eu era um fã inconteste do trabalho de Boris Vallejo e do recém-falecido Frank Frazetta, ilustradores realistas que costumavam povoar as capas da revista Metal Hurlant e a imaginação de todo pós-púbere de vinte e poucos anos com ninfas semi-nuas, fadas sem vergonha e bárbaros hipertrofiados. Pra mim aquilo era o supra sumo, uma supremacia artística que julgava inatingível. Se por lado eu era filho de pintor expressionista, por outro era fascinado por histórias em quadrinhos e minha cabeça era uma confusão de Picasso com Jack Kirby, Pollock com Hergé e Miró com Walt Disney. Para mim, tudo isso era bom, mas como sempre acompanhei o processo de criação de meu pai, conhecia os caminhos do abstracionismo e um pouco do surrealismo. Porém, o coronel Aragão era péssimo em desenho naturalista, e como seu trabalho passava longe disso, a representação do real me parecia uma realização nas raias do impossível, um feitiço técnico. Jamais havia visto alguém produzir algo como as ilustrações de Vallejo ou Frazetta e não tinha a menor idéia de como se fazia aquilo.
Qual não foi minha surpresa quando, ao entrar na Escola de Belas Artes, descobri que o que eu julgava o supra sumo era considerado lixo pela maioria das pessoas de bom gosto.
Passei anos de minha vida sem entender porque obras que eram claramente dificílimas de ser produzidas e certamente exigiam conhecimentos técnicos e anatômicos acima do normal eram motivo de esgares de nojo. Meu espanto cresceu quando percebi que algumas de minhas outras áreas de interesse - como rock pesado e literatura de ficção científica - também eram considerados "lixo da subcultura".
Hoje eu acho que entendi.
Acho.
A leitura de alguns livros foi fundamental para me esclarecer certos pontos: o principal deles foi o já óbvio Apocalípticos e Integrados, de Umberto Eco, com sua análise sobre a estética do mau gosto, mas obras de Walter Benjamin, Edgar Morin e Teodor Adorno ajudaram bastante a me fazer entender minhas preferências pessoais e por que, geralmente, não eram bem vistas pelo meio acadêmico.
Para resumir a ópera-rock, podemos dizer que obra de mau gosto é aquela que tem um ou mais elementos destoantes, seja por exagero, seja por intenção de parecer algo que não é. Uma mulher obesa com um biquini minúsculo é de mau gosto porque está usando uma peça de roupa que não é para seu manequim. Da mesma forma, em termos de rock pesado, a técnica perfeita e "classicosa" de um guitarrista como Yingwie Malmsteem é fora de contexto dentro de uma estrutura melódica pobre. As imagens realistas de Vallejo e Frazetta entram nesse rol porque - assim como a guitarra de Malmsteem - são tecnicamente perfeitas, mas embalam um produto geralmente de escopo reduzido, revistas para consumo imediato, de periodicidade mensal e que não visam a perenidade. Seria o mesmo se tivéssemos Velásquez pintando, mensalmente, a capa da revista Caras (ok, exagerei, mas serve como exemplo).
O mesmo acontece, muitas e muitas vezes, com a Ficção Científica literária. Parece que ela quer ser o que não lhe cabe. É cheia de boas intenções, boas idéias, mas ainda falta - citando meu amigo Osmarco Valladão - aquele grande romance de FC que, ao ser colocado lado a lado com A Montanha Mágica, de Thomas Mann, ou Crime e Castigo, de Dostoiévski, não faça feio.
Candidatos ao posto não faltam. Duna, Hyperion, O Homem do Castelo Alto, Terrarium, Um Estranho Em Terra Estranha. Todos esses e muitos outros anseiam por ser considerados merecedores desse lugar de honra, mas apenas dois conseguiram ultrapassar a barreira da "arte menor": Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell (A Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, também entraria nesse time, mas talvez mais pela versão cinematográfica de Stanley Kubrick). Na verdade, ultrapassaram tanto que, hoje em dia, não são considerados obras de Ficção Científica pela inteligentsia, mas fábulas caucionárias.
Talvez o motivo da perenidade das obras de Huxley e Orwell, o que as faz ser levadas a sério pelos acadêmicos, seja o fato de ambos não colocarem rótulos sobre o que estavam escrevendo. No momento em que se utiliza um termo cunhado para os mass media, automaticamente muitas portas se fecham. Dizem que Salman Rushdie recusou um prêmio de “melhor romance de Ficção Científica do Ano” das mãos de Arthur Clarke porque seu agente afirmou que, caso aceitasse e isso viesse a público, jamais conseguiria vender outra obra sua fora do nicho da Ficção Científica. No mundo dos quadrinhos, Will Eisner tentou driblar esses preconceitos cunhando uma nova nomenclatura para seu trabalho Um Contrato com Deus. Chamou-o "novela gráfica" e, com isso, conseguiu uma aceitação em editoras e livrarias que antes lhe barrariam a entrada.
Será que se o livro Terrárium, dos portugueses João Barreiros e Luis Filipe Silva, considerado o maior romance de ficção científica já escrito em nossa língua, deixasse de lado a alcunha de FC e se assumisse como "obra literária" pura e simples não seria aclamado internacionalmente? E se deixarmos o "nome" FC de lado, reservado para as ditas Space Operas, e tomarmos como exemplo Bráulio Tavares, com sua Máquina Voadora, que procurou seguir essa idéia? A indicação de Síndrome de Quimera, de Max Mallmann, ao Prêmio Jabuti de 2001 também parece apontar para um caminho sem rótulos para nossos escritores "fantásticos".
Tudo isso porque o rótulo, a marca, a inclusão em um gênero específico só parece fazer uma coisa em favor da Ficção Científica nacional: relegá-la ao gueto da subcultura. E nada mais cafona, kitsch, do que subcultura que tenta fingir que não o é.
Ah, e antes que me perguntem: meus contos são ficção científica, sim. E ficção pop também. E ainda pulp aventuresco despretensioso. Mas eu nunca pretendi fugir do kitsch, muito pelo contrário. Diversão é solução, sim. Pra mim.
12 comentários:
Enfim, tudo depende muito de contexto. Pros acadêmicos a classificação faz diferença porque vivem muito, e dependem, desse universo de citações fontes e coisas do gênero que para eles é prova de conhecimento/mérito.
Mas para a maioria das pessoas, o que vale é o que a obra remete e o que ela a faz sentir. Se o sujeito não tem o gosto por histórias pulp ou de grandes aventuras, não será remetido elas, tal como alguém que curte mais esse gênero narrativo.
Nesse ponto, toda a obra é limitada, por focar aspectos específicos ou remeter a sensações que nem todos captam com a mesma precisão.
Concordo que diversão é tudo. Não importando a habilidade técnica, o que interessa é passar a mensagem aos interlocutores atravéz da obra e entretê-los com ela tanto quanto você se entreteve criando.
Aí é que está Octa; você tem uma "vida" fora da FC muito extensa, Intempol e A Mão Que Cria são o seu hobby.
Hobby a gente faz pra distrair, pra relaxar.
Como eu sempre digo, a FC também é meu hobby: nunca me deu grana ou melhorou a vida sexual ;))
Excelente artigo
Seguindo teu mote, então, Doc, a subordinação do texto fantástico como representativos de uma parcela do real ou do possível, seguindo no caminho inverso ao do escapismo seria a principal característica que a academia poderia aceitar como critério para inclusão destas obras no panteão daquelas que "falam essencialmente sobre o mais profundo da natureza humana".
Ou então podemos tentar lqançar mão de argumentos até que os acadêmicos fossem convencidos da existência deste contexto (nem que fosse por eventuais evidências circunstanciais circuambulando em torno do autor).
O que vejo é que cabe também aquele aspecto de estar na hora certa no lugar certo, que no caso de certas artes seria mostrar ressonância para com as questões que estariam mais candentemente presentes no cenário de fundo do máximo de pessoas de uma certa geração (fácil de falar, mas só implementável concretamente num estilo de sabedoria mais "post-facto" do que previsível).
De qualquer forma me alinho com teu gosto pelo que se expressa com um certo grau de elaboração, lamentando que o contexto seja às vezes tão indutivo ao descartável.
Ricardo França, o R.7.
Oi, Café, Ivo e França.
Desculpem a demora na resposta, mas lá vai.
Olha, Café, eu não afirmo categoricamente que diversão é solução para todos, mas é indispensável para mim. Isso tem a ver com o fato de não ser um escritor profissional, o que coaduna com os postulados do Ivo a respeito de não retirar o sustento da família de meus esforços como escriba de ficção. Isso me desobriga de produzir qualquer coisa que não seja o que me agrada.
Mas isso não significa que acredite que a função das obras de arte seja apenas divertir o público. Ela até pode divertir, mas não apenas isso.
Arte tem de transformar o indivíduo. Arte tem que mexer com emocional. Arte tem de mudar olhares e, em consequência, moldar o real. Mas quando se fala em cultura de massa, somam-se aos critérios de qualidade as necessidades de adequação a públicos segmentados e padrões estéticos que remontam aos folhetins de Alexandre Dumas e Ponson du Terrail e são representados hoje por gente tão díspar quanto Dan Brown e Manoel Carlos.
Não acho que tenhamos de fazer má ficção, mas que devemos fazer boa ficção de polpa, com consciência de que É ficção de polpa, dialogando com os clássicos, mas em paralelo aos contemporâneos.
O que não dá é esperar que sejamos considerados mais que isso. Se o reconhecimento vier para qualquer um de nós - e agora refiro-me ao França - será pelas qualidades intrínsecas do que produzirmos, mas é importante perceber que não é da natureza desse material transcender seus nichos ou sequer almejar a perenidade.
Resumindo: façamos com prazer e honestidade o nosso melhor. O que vier depois, se vier, é lucro.
Concordo com o que você diz, Octa.
Com os quadrinhos, para usar o exemplo da arte que eu conheço melhor, as obras que realmente "transcenderam" NÃO foram pensadas como algo mais sofisticado.
Tio Patinhas do Barks, Tintim de Hergé, até Watchmen pretendiam apenas ser trabalhos de boa qualidade em seus respectivos gêneros.
Quanto a arte propriamente dita, eu tenho uma dúvida.
Eu vi as pinturas do Louis David no Louvre. Perfeito artista naturalista capaz de pintar em uma escala inimaginável para a maioria dos artistas (sabe a famosa pintura da coroação de Napoleão? Ela está em ESCALA REAL! Uma figura de uma pessoa é do tamanho de uma pessoa! Pintar aquilo deve ter sido um inferno!). Ele seria considerado um artista "menor" comparado a um Picasso da vida?
Vale lembrar que não tem Picasso no Louvre...
(Palavra de verificação: sessesse, deve ter sido escolhida por uma rotina nazista...)
Muito legal o texto, Octavio.
Quanto a mim, tenho uma política bastante simples em relação a rótulos: não reivindico nenhum e aceito todos.
Eu costumava dizer que toda forma de arte é entretenimento, apenas com variações no grau de sofisticação desse entretenimento. Mas, ultimamente, começo a pensar que talvez seja útil diferenciar entretenimento de fruição.
Entretenimento é uma palavra que denota distração, escapismo. Já fruição pode significar ao mesmo tempo o ato de desfrutar, de se aproveitar de algo, quanto o prazer que se sente com esse desfrute.
Entretenimento, assim, seria uma das formas de fruição, porém não a única.
Olá, Octávio. Bem, posso lhe dizer uma coisa: pelo que entendi do conceito de kitsch, não é o rótulo que o torna kitsch. Um romance de ficção científica, que não se assuma ficção científica e tente ser algo mais, será kitsch. O que falta não é o abandono do rótulo (talvez o mercado olhe com outros olhos pro produto, quem sabe), mas o que falta é a mensagem poética, ou estética. O que falta é o conteúdo. Não o enredo em si, mas sim o estilo. É saber usar a arte pra fazer mais que "contar uma história". Por isso a maior parte da Ficção Científica é desconsiderada (alé, claro do preconceito já institucionalizado): falta-lhe, realmente obras a serem levadas "a sério", por assim dizer. Não temos um autor de ficção científica que se preocupe com estética, que tenha "mensagem poética". Nem o Bradbury, que é considerado a cereja do boo da sci-fi pela inteligentsia possui , como mostrou Umberto Eco nesse mesmo capítulo. Não que eu esteja dizendo que todo mundo tente imitar Joyce ou Guimarães Rosa agora (issi seria, definitivamente kitsch), mas ter algo a mais por dizer que aquelas simples linhas ali, seria um passo pra ser aceito na Academia, eu creio. mas claro, temos escritores preocupados em serem divertidos, como o seu caso, o que é ótimo. Que é o passo, se assumir como "pop" e levantar a bandeira, ser honesto e competente, não tentar ser um grande escritor cheio de conceitos incompreensíveis e depois reclamar que não é levado a sério: escreve pro nicho do nicho e depois se lamenta. Bem, abraços camarada.
Só para constar: a Academia, graças aos esforços de abnegados como os doutores Fábio Fernandes, Adriana Amaral, Rodolfo Londero e mais alguns, já vem tomando conhecimento da produção de FC&F brasileira. Isso sem falar na Academia gringa, por intermédio de Mary Elisabeth Ginway e outros.
Bom, Norman Rockwell era considerado "mass media" em seu tempo e hoje seus originais valem milhões...
Fagner, a questão pecuniária não é a principal medida para a qualidade das obras.
Sou fã inconteste de Norman Rockwell, até pelo viés social de seu trabalho, muitas vezes esquecido pelos admiradores, mas há que se considerar que o fato da obra ter resistido ao tempo já é indicativo de suas qualidades.
Certas obras de arte foram, inicialmente, artefatos com função determinada e, como tempo, transcenderam (Coliseu, anyone?).
Octa, desde o dia em que li esse texto pela primeira vez (retornei a ele em três ou quatro oportunidades) fiquei encanado com uma resposta, se é que existe uma ideal. Mas ele me influenciou bastante, devo admtir. Alguns desses pontos de influência você vai ver no futuro, mas encontrei uso para ele (assim como sua divulgação) num texto que publiquei hoje de madrugada, sobre A Origem. Dá uma zoiada. http://bit.ly/sos-inception
Grande abraço,
do amigo,
Fabio Barreto
Valeu pela divulgação, Fábio. E belo texto também, hein?
Postar um comentário