sábado, 12 de março de 2011

Céu e Inferno em Preto e Branco

por Octavio Aragão (coluna originalmente publicada no jornal Achei USA, junho de 2010)

Kill the spirit and you'll be blinded/The end is always the same
Ronnie James Dio

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara
José Saramago


Página de Flash Gordon por Al Williamson
Houve quem chamasse o cantor Ronnie James Dio, morto em 16 de maio, de ridículo. Também afirmaram que o escritor José Saramago, falecido em 18 de junho, era chato. Sobre Al Williamson, ilustrador e quadrinista novaiorquino cujo passamento ocorreu no dia 12, uma semana antes de Saramago e menos de um mês depois de Dio, não li nenhuma crítica negativa, o que talvez já seja uma crítica em si, ou no mínimo um atestado de sua aparente desimportância.

Williamson ganhou fama desenhando a HQ de Flash Gordon, pela qual foi comparado a mestres como Alex Raymond e Harold Foster. Depois produziu versões quadrinizadas dos filmes Star Wars e Blade Runner em revistas nas quais exibia um traço realista numa época em que o cartunesco, o caricatural era mais valorizado. Ronnie James Dio, ex-integrante de bandas de renome como Rainbow e Black Sabbath, era dono de um timbre único. Basta ouvir suas primeiras gravações do final da década de 60, com o grupo Elf, ainda longe do estigma do rock pesado, para constatar a qualidade de sua voz e interpretação, mas o universo temático de suas canções variava entre o horror e a fantasia épica, cheias de demônios e cavaleiros medievais.

Tanto Williamson quanto Dio foram profissionais dotados de técnica e talento, porém ancorados a estilos e a indústrias do entretenimento que, apesar de lhes conferir dinheiro e algum reconhecimento de público e de seus pares, jamais lhes trouxe respeito fora de seus nichos. Williamson poderia ter se tornado um artista gráfico de peso, digno representante da prestigiosa Society of Cartoonists of America, e Dio, com pouco esforço, poderia se destacar como uma das grandes vozes da música popular de sua geração, como Mick Jagger ou David Bowie.  

E o que José Saramago, do alto de seu prêmio Nobel de literatura, tem a ver com isso? Se fizermos um apanhado dos temas que o escritor lusitano escolheu como repertório, perceberemos alguns momentos de proximidade ao universo imagético de Williamson e Dio. Em A Jangada de Pedra (1986), vemos um grupo de personagens em peregrinação por uma Península Ibérica desgarrada do resto da Europa, que singra o Oceano Atlântico, rumo a um destino ignorado. Ecos de Descendo no Maelström (1841), de Edgar Allan Poe? Talvez, mas não consigo deixar de pensar nas cidades voadoras de Flash Gordon e Star Wars. Em Ensaio Sobre a Cegueira (1995), temos a retomada de um tema comum à ficção científica escrita por autores como John Wyndham em Day of The Triffids (1951), e André Carneiro no conto A Escuridão (1963), mas também há um clima que remete à letra da canção The Mob Rules (1981), da fase em que Dio gravou com o Black Sabbath, que mostra a plebe rude, cega e violenta tomando conta da sociedade. E nem vale a pena nos estendermos em comparações entre O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) ou Caim (2009), último romance de Saramago, e toda a obra de teor herético de Dio, nas quais Deus não é, digamos, confiável.

Qual a diferença, então? Por que Saramago é reverenciado e os outros não? E por que é chamado de chato por alguns?

A palavra chave é “forma”. Trocando a pontuação e alterando a construção dos períodos, o escritor não se prende apenas ao inusitado do tema, mas transforma a visão do leitor. A “forma”, nesse caso, transcende a “função”, ampliando o entendimento e, principalmente, fazendo o leitor pensar, convidando-o a tornar-se parte do processo de construção da obra. Essa comunhão Williamson e Dio não conseguiam - e talvez nem pretendessem. Os trabalhos do desenhista e do cantor eram produzidos para um público cativo com padrões estéticos rígidos, que espera sempre mais do mesmo.

Talvez por isso as críticas ao lado “ridículo” de Dio, um senhor de 67 anos vociferando no palco a respeito de diabos e dragões, com o cabelo rareando e a compleição física de um duende coadjuvante de O Senhor dos Anéis. Numa primeira instância, sim, parece ridículo, mas depois recordo de Plácido Domingo, fantasiado de Don Giovanni, caindo nas garras do demo no clímax da ópera homônima, e de repente Dio não parece tão mal. Por esse prisma, o cantor é amado pelos fãs enquanto padece pelas mãos dos críticos, sem meios termos.

Não é o caso de Saramago. Seu ateísmo, seu eterno questionar, a sub-inversão das regras o tornam querido pela maioria dos críticos e alvo daqueles que o acusam de não assumir o flerte com a literatura de gênero. Também existem os que apenas rejeitam seu trabalho, acusando-o de usar uma forma complexa para encobrir a ausencia de conteúdo.

Para Dio e Saramago, Céu e Inferno são salas intercambiáveis. Só rezo para que nas paredes do corredor por onde esses artistas passeiam para baixo e para cima haja espaço para um afresco desenhado por Al Williamson, retratando em detalhes a guerra final entre as tropas celestes e as hostes adversárias. Em preto e branco.

4 comentários:

Rynaldo Papoy disse...

Eu já achava inteligente, agora entrou na categoria de gênio. Você me concederia uma entrevista?

Octavio Aragão disse...

Oi, Rynaldo.

Como disse o Ray Charles, gênio foi o Einstein. E como diz a Luciana, graças à mulher dele.

Mas claro que topo a entrevista. Manda bala!

Fabio Fernandes disse...

Excelente texto, Octavio. Gostei das sacadas, como sempre pra lá de pertinentes vindas de você. Abraço!

Octavio Aragão disse...

Fábio, um elogio desses é sempre bem vindo. Valeu, compadre! A gente se vê nas páginas do Cidades Indizíveis.