Por Octavio Aragão
(artigo publicado originalmente no jornal Achei USA)
Não se pode viver no isolamento; a vida, portanto, é relação, e relação é ação. Krishnamurti
Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quando a vida dá ou tem, (...)
Fernando Pessoa
Eis que a culpa de tudo é o bulliyng colegial. Eis que a desculpa de tudo é a falta de coragem em dar o troco na hora certa, ser coitadinho é salvo conduto para a chacina de inocentes, de crianças que nem sabem que um dia você foi alvo de piadas, foi pele no colégio.
Não se pode viver no isolamento; a vida, portanto, é relação, e relação é ação. Krishnamurti
Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quando a vida dá ou tem, (...)
Fernando Pessoa
Eis que a culpa de tudo é o bulliyng colegial. Eis que a desculpa de tudo é a falta de coragem em dar o troco na hora certa, ser coitadinho é salvo conduto para a chacina de inocentes, de crianças que nem sabem que um dia você foi alvo de piadas, foi pele no colégio.
Demorei para decidir escrever esta coluna porque um certo senso de fatalidade me assombrava, como se o fato de tocar no assunto do massacre de Realengo de alguma forma sobrenatural repetisse a tragédia, mas sinto que ainda há um ângulo sobre o qual a luz de todos os psicólogos amadores que se debruçaram sobre o horror ocorrido no subúrbio do Rio ainda não incidiu: a formação de um tipo de clube do Dr. Silvana.
O Dr Silvana era o arqui-inimigo do Capitão Marvel, um velhinho genial que foi humilhado por seus pares cientistas e considerado uma figura ridícula e meio doida que deveria ser, no máximo, motivo de chacota. Esse velhinho careca, franzino e feio como a necessidade declara guerra não apenas à comunidade científica, mas também a toda a humanidade. Silvana comete toda sorte de crimes sempre combatido e derrotado pelo apolíneo Capitão Marvel, que na verdade é Billy Batson, um menino de 12 anos de idade capaz de se transformar num gigante superpoderoso. Ou seja, Silvana e Marvel podem ser encarados como uma metáfora ao grande mito contemporâneo do valor da juventude. Juventude em todas as facetas, como sinônimo de saúde, beleza, poder e de um tipo de imortalidade artificial almejada por todos.
Geralmente os planos de Silvana giram em torno do roubo ou da apropriação indireta dos poderes de Marvel, a sabedoria de Salomão, a força de Hércules, o vigor de Atlas, o poder de Zeus, a invulnerabilidade de Aquiles e a velocidade de Mercúrio. Deixando de lado o improvável sincretismo hebreu-greco-romano e a ironia de um sujeito sábio com Salomão sempre cair nas mesmas armadilhas, o que podemos perceber é que aquele que não pertencer ao ideal olímpico encarnado no Capitão Marvel seria necessariamente um pária social, mesmo com qualidades dignas de nota. Diante disso, é fácil entender porque pessoas que sofreram agressões e humilhações na infância se identificariam com o comportamento do vilão. O problema é que, enquanto as ações de Silvana são inócuas e sempre neutralizadas pelos poderes divinos de Marvel, os silvanas do mundo real machucam, matam e mutilam de maneira irreversível. A família não sabe que o filho agride ou é agredido por colegas e a escola, na maioria das vezes, não se considera responsável por esses casos. Como resultado desse impasse e na falta de um Capitão Marvel para dar uma sova nos silvaninhas, agora o Ministério Público quer que o bullying seja considerado crime, o que me parece um erro.
A solução não soluciona, ela agrava o problema. A provocação, a gozação, o humor por intermédio do ridículo são elementos indesejáveis, mas infelizmente comuns no desenvolvimento social. É preciso saber lidar com isso, como com todos os percalços que nos atropelarão vida a fora. O ridículo cruel existe e tentar puní-lo nas crianças não resolve, mas o clube dos Silvanas cresce a cada dia, com os ressentimentos e as invejas introjectadas servindo como estopim para explosões de raiva. Cada um deles se acha um herói injustiçado em busca de vingança e também de um tempo de exposição midiática. Quase todos deixam registros em imagem ou gravações numa busca dos quinze minutos de fama. Eles querem a peculiar imortalidade da fama após a morte, a velocidade dos tubos catódicos e da comunicação de massa, um tipo de ressurreição midiática que repete imagens violentas como se o matador fosse um Minotauro correndo pelos corredores do labirinto de Creta, exterminando suas vítimas eternamente. Tornam-se fantasmas em vídeo, que voltam para agredir seus ex-carrascos explicando seus planos e motivos como vilões bidimensionais de histórias em quadrinhos impressas em preto, branco e vermelho.
Devemos fugir desses rostos pixelados ou, ao contrário, observá-los sempre que possível para aprender como combatê-los? Adiantaria escondermos as fotos de Adolf Hitler? Apagar o nazismo e seus malefícios consertaria o mundo? Olhar para o lado, fingir não enxergar nada mais é do que tentar esconder os fatos. Sem dúvida é mais confortável não ver a miséria, mas fechar os olhos nunca ajudou ninguém a viver melhor. Houve quem reclamasse da hiperexposição post mortem do assassino de Realengo, mas talvez a repetição sensacionalista (sensacionalista sim, porque também temos de admitir nosso voyerismo sádico) do close up do monstro nas páginas dos jornais e nas TVs nos permitam reconhecer os inimigos, e o pior é que cada um deles, com seu tom monocórdico, olhar frio e expressão nula, caras de lua nas telas quadradas, são o nosso reflexo, o inverso dos sonhos.
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