sexta-feira, 19 de outubro de 2012

O Rato roeu a roupa do rei de Ryoh - uma cena editada de Rainha das Estrelas

 Quase todos os personagens principais de Rainha das Estrelas foram baseados em amigos, colegas e conhecidos, às vezes mesclando caracterísitcas de várias pessoas, outras vezes exagerando personalidades ao ponto da caricatura. Três deles, porém, na minha opinião, transcenderam e ganharam tridimensionalidade. Mamba Mauzh, o gênio da engenharia e das relações humanas, duas coisas aparentemente incompatíveis, Raga, o militar que se considera honrado, mas que muitas vezes está diante de dilemas éticos e nem sempre escolhe a opção mais simpática, e Argo, cujas ações motivaram e delinearam o cenário, mas jamais aparece, sempre descrito pelo ponto de vista dos outros.

Mauzh é o sujeito cujo carisma se sobrepõe à ética. Raga é o oposto, só gostamos dele quando compreendemos sua fidelidade a um código inquebrantável. E Argo, nosso Roque Santeiro, é aquele que foi sem nunca ter sido.

No trecho abaixo, bastante diferente daquele publicado na antologia Space Opera, os três são apresentados pelo ponto de vista de um quarto personagem, Ronston, o segundo vértice do triunvirato criminoso conhecido como O Grupo. Compor Mauzh, Raga e Argo por intermédio do olhar parcial de Ronston foi um belo exercício.


Interstellar Queen sobrevoa fazenda. Por S. Cowley



  Ronston recebeu a confirmação por seu PorTel alternativo, que usava apenas para negócios extra Grupo. A imagem de Amélia Fornin apareceu, olhos fundos de quem não dormiu. Ronston bloqueou o sinal de vídeo para que a moça não visse seu rosto, liberou o comunicador e esperou pelo relatório.

 – Fiz o que pediu – disse Amélia com voz embargada – A esta altura Mamba Mauzh deve estar preso ou morto.

    – Eu seria idiota se acreditasse nisso – Ronston estava apreensivo, mas anos naquela vida ensinaram-lhe a manter a voz neutra – Ainda não confirmei a ação de meu pessoal, mas tenho certeza que nada será fácil.

    – E minha filha? Está a salvo?

    – Tudo depende do resultado da ação. Desligue agora, mas mantenha-se atenta, se precisar de você entro em contato.

    Recostou-se na poltrona forrada com pele de neocobra e remexeu os papéis sobre a mesa. Desde quando o Grupo tinha se tornado tão burocrático? Onde estavam os dias de ação e pilhagem, quando saqueavam os cofres da Coroa e estripavam gente da Classe Dominante todos os fins de semana? Quando foi que perderam a Área Vermelha? Como deixaram indivíduos do naipe de Mamba Mauzh entrarem no Grande Jogo?

   Ronston sabia as respostas. O Grupo cresceu tanto que precisava virar um tipo de empresa, de organização estruturada para sobreviver à demanda de seus clientes, os negociantes de armas e de gente. O Grande Jogo deixou de ser físico e passou a ser mental, matemático. Nada mais de conquista, mas negociação, economia e política, como os expedientes utilizados pela Coroa que eles tanto abominavam.

   Mamba Mauzh era o homem certo para eles no momento de transição. Talentoso com máquinas e números, capaz de liderar equipes e de incrementar a produção com projetos bélicos. Com ele, o Grupo deixou de ser um empreendimento de saque e passou a ter um lado criativo. Vários projetos desenvolvidos pela divisão de Mauzh foram comprados e implementados por engenheiros da própria Coroa. O Grupo conheceu a prosperidade.

   Contudo, Ronston era da velha guarda e sabia que conforto enferruja. Respeitava Mauzh pelo talento, mas jamais compartilhou de seus ideais românticos. Preparou-se para o momento em que o Rato roesse a corda. A notícia da prisão de Anton Argo foi o que fez Mauzh sair da toca e a reunião imediata dos piratas remanescentes deixou bem claras as afiliações de seu colega.

    Há vinte anos os comandos chefiados por Argo auxiliaram a Coroa, desbaratando uma tentativa de ataque a Ryoh da parte de um general megalomaníaco do Reino de Cah-Nayny, e o resultado foi que a Coroa lucrou e os idiotas que realmente fizeram o trabalho duro foram debandados. O rei de Cah-Nayny jurou fidelidade à Coroa de Ryoh e Raga, antes um tipo de consultor da Família Real, virou um manda-chuva com ares de Primeiro Ministro.

    Os piratas – era assim que eles gostavam de ser chamados – ganharam da Coroa um velho cargueiro e, graças aos talentos de Mauzh e alguns outros, a banheira virou uma máquina voadora batizada com o nome questionável de Rainha das Estelas. Foi a Rainha que invadiu Cah-Nayny, enfrentou as tropas do general Diós Scenicko e sofreu a traição de Raga.

    O então o major Raga instou a tripulação de piratas à rendição assim que reentrou o território da Coroa. Argo, antecipando o rival, assumiu o controle, pediu a Mauzh que realizasse um de seus milagres mecânicos e, depois de esvaziar a Rainha, atacou sozinho a nau capitânea da Coroa, a Maré Alta, onde Raga se encontrava. As duas naves caíram em chamas no oceano. Bastante ferido, Raga escapou. O corpo de Argo jamais foi encontrado, mas apesar disso o comandante dos piratas ficou imortalizado na memória afetiva da população como o último dos rebeldes, alguém que desafiava não apenas a Coroa, mas qualquer poder instituído.

    Talvez por isso a Coroa tenha caçado a tripulação da Rainha. Os que escaparam às correntes e à execução saíram de cena e o Grupo viu nisso uma chance de ampliar seus quadros. Depois de muita investigação, identificaram alguns dos sobreviventes. O mais importante era Mamba Mauzh,  responsável por transformar uma chaleira voadora em uma das mais impressionantes aeronaves de combate da história de Veracroce. Com o auxílio dele poderiam fazer tremer os reis de Ryoh.

    O Grupo devia muito a Mauzh. Dinheiro e prestígio. Contudo, a vida corre e as coisas mudam. O tempo de gratidão passou e talvez necessitassem de outra diretriz. Ronston pensava que seria a hora de voltar os olhos para um novo tipo de Poder.

    Foi nesse instante que o PorTel chamou. Era Zander Belua, o melhor assassino do Grupo.

    Mais uma vez Ronston manteve o som, mas desligou o visor.

4 comentários:

Hugo Morgado disse...

Este é meu primeiro contato com o universo de Rainha das Estrelas, mas gostei do texto. Espero ler toda a obra.

Octavio Aragão disse...

Muito obrigado, Hugo.

A novela “Dias de sangue na Área Vermelha está na antologia Space Opera, da Editora Draco, e é encontra-se à venda aqui: http://editoradraco.com/2012/07/19/pre-venda-com-20-de-desconto-e-frete-gratis-space-opera-jornadas-inimaginaveis-em-uma-galaxia-nao-muito-distante/

Leonardo Peixoto disse...

Existem alienígenas no universo de Rainha das Estrelas ?

Octavio Aragão disse...

Sim e não, Leonardo. Parto do princípio que, no momento da história, a humanidade é uma praga que se alastra por uma galáxia inocente e desprotegida. Porém, como você deve recordar do prólogo de rainha das Estrelas, antes houve uma civilização em Ryoh.