segunda-feira, 14 de abril de 2014

Palpites e pitacos: uma entrevista perdida sobre a ficção científica brasileira

Eis uma conversa encontrada em meus back ups, datada de 2004, com a pesquisadora da UERJ, Fabiana Câmara, sobre ficção científica, com ênfase na produção brasileira de minha geração. Claro que muita coisa aconteceu desde então, mas creio que a maior parte do que escrevi, por incressa que parível, ainda é minha opinião sobre o gênero e autores, o que significa que, na verdade, quem não evoluiu fui eu..

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Quando começou a ler FC?
Como acredito que os cânones da FC são parte inerente da cultura de massa, tive meus primeiros contatos com conceitos como viagens interplanetárias, viagens no tempo, clonagem ou pecepção extra-sensorial nos desenhos animados e HQs.

Em termos literários, considero A Chave do Tamanho, de Monteiro Lobato, o primeiro romance de FC que li na vida, em 1973, aos nove anos. Apesar de um clima de fantasia que daria arrepios em Júlio Verne, a visão de Lobato de uma humanidade miniaturizada subitamente jogada num universo hostil e buscando a readaptação é de um sense of wonder comparável às grandes obras de Wells (O Alimento dos Deuses), Matheson (O Incrível Homem que Encolheu) e Wyndham (Day of The Triffids). Outro dia li O Presidente Negro, outro romance de FC escrito em 1926 pelo mesmo autor, e fiquei apavorado com suas simpatias por ideias como eugenia e superioridade racial, mas isso não desmerece o valor dos livros infanto-juvenis, produzidos anos depois.

O segundo romance de FC que li, em 1974, foi Sabotagem no Planeta Vermelho, do francês Chistian Grénier, seguido de Xisto no Espaço, da brasileira Lúcia Machado de Almeida, ambos romances juvenis. Ou seja, meu primeiro contato com FC não foi com a vertente anglo-saxônica, mas com seu braço latino, nem sempre bem visto. Fausto Cunha, por exemplo, em seu ensaio sobre FC brasileira, critica a série onde foi publicado o livro de Grénier, considerando-o parte de uma produção de baixa qualidade literária. 

Pouco mais tarde, em 75, tive contato com Eu, Robô, de Asimov, e um livro que influenciaria toda minha vida: o fix-up Uma Sombra Passou Por Aqui (The Illustrated Man), de Ray Bradbury, também conhecido como O Homem Ilustrado. Bradbury passou a assombrar minhas redações de colégio e só perdeu o posto de meu autor preferido depois que li Histórias Extraordinárias, de Edgar Alan Poe, no ano seguinte. O último impacto relacionado à FC literária digno de nota de minha adolescência foi a coletânea de contos Sombras da Noite, de Stephen King, em 1979. Resumindo, pode-se dizer que fui influenciado pelos contos de língua inglesa e pela estrutura do romance juvenil brasileiro.

Qual foi seu primeiro contato com a FCB?
Como disse, considero A Chave do Tamanho meu primeiro contato com a FC literária de qualquer nacionalidade, mas colocando isso de lado, o primeiro romance de FCB que li foi Padrões de Contato, de Jorge Luis Calife, entre outras coisas por causa da capa, uma ilustração do casal Ingrid Von Steurer e GIlberto Zavarezzi, colegas meus da Escola de Belas Artes. Por causa desse romance, passei muitos anos sem me interessar pela produção nacional de FC.

Calife tem seu valor, sem dúvida, mas só me reaproximei da FC nacional quando comecei a frequentar as reuniões do CLFC do Rio de Janeiro e conheci trabalhos de Bráulio Tavares, Carlos Orsi Martinho, Fábio Fernandes, José Fernandes e Gerson Lodi-Ribeiro publicados no Somnium, o fanzine do clube. Quando li A Espinha Dorsal da Memória, coletânea de Bráulio Tavares, o conto O Inimigo Interno, de Fábio Fernandes, e uma aventura de horror contemporãneo de Carlos Orsi, onde ele misturava publicidade de jeans e magia, pensei "ah! Agora sim, tem algo realmente diferente na FC feita por brasileiros". Com o advento da versão nacional da Isaac Asimov Magazine, fiquei pasmo com a qualidade de contos como Complexo de Narciso, de Ivanir Calado, e A Ética da Traição, de Lodi-Ribeiro.

Quando começou a escrever e quais as principais influências?
Comecei cedo, aos, sei lá, nove anos, com textos curtos e muito apoio do meu pai. Geralmente pegava temas de redações escolares e desenvolvia em textos maiores em casa. Esse hábito durou até recentemente, quando reciclei algumas idéias da época do Segundo Grau no conto Os Olhos de Quem Vê, publicado no Megalon Especial 2000. Minha estreia profissional, porém, ocorreu apenas em 1998, com Eu Matei Paolo Rossi, publicado na antologia Outras Copas, Outros Mundos, da Editora Ano Luz.

As influências são difíceis de determinar, mas posso analisar alguns de meus textos.

• Íris Lettieri no Céu, de 2001, publicado no fanzine Hiperespaço: trata-se de um sonho transcrito quase ipsis-literis onde vejo ecos das crônicas de Carlos Eduardo Novaes;

• Armageddom em Madureira, de 2003, na edição especial do Hiperespaço: disseram que esse conto tem influências de Stephen King, mas na verdade é puro Ray Bradbury, com pitadas da mais reles Marvel Comics. O título e o plot inicial - o fim do mundo no subúrbio do Rio - veio diretamente de outro sonho, mas o conteúdo foi bastante alterado;

Os Olhos de Quem Vê, 2000, Megalon Especial: a base foram os contos "apaixonados" de Edgar Alan Poe, com suas mulheres diáfanas, fascinates e irremediavelmente mortas, mas há algo das obras de Richard Matheson, Bid Time Return (Em Algum Lugar do Passado) e I Am Legend (Eu Sou a Lenda);

Eu Matei Paolo Rossi, de 1989, publicaod na antologia Outras Copas, Outors Mundos: afirmaram que baseei o contexto desse conto no curta-metragem Barbosa. Pois bem, até hoje jamais assisti ao filme. As raízes de EMPR estão, mais uma vez, em Carlos Eduardo Novaes e Richard Matheson;

Um Museu de velhas Novidades, 2000, em Intempol: aqui sim, Stephen King é a influência principal, mas ainda há elementos de dezenas de fontes diferentes, de seriados de televisão a romances de Ian Fleming, de letras de canções de Cazuza a paráfrases de Nietzsche;

• Trevo, 2000, em Phantástica Brasiliana: Bradbury, Bradbury, Bradbury. O Bradbury de O Lixeiro e As Frutas no Fundo da Fruteira.

• A Mão Que Cria - romance de 2006, inicialmente concebido como uma novela para o site Hyperfan, em 2003: a mistura de Anno Dracula, de Kim Newman, e Os Portais de Anúbis, de Tim Powers, deu nessa novela fanfic Steam/Cyberpunk.

A que deve a situacão da FCB no panorama literário brasileiro atual?
Em primeiro lugar, vamos estabelecer que FC é, como o Rock'n Roll, um misto de produção cultural e atitude multimídia, certo? Ambos são fenômenos policulturais ligados à contemporaneidade. A FC brasileira existe e não existe. Dizer que ela é mal sucedida é fechar os olhos a sucessos televisivos como O Clone, e até a facção mais hard ganha inegável receptividade quando Calife lança seus trabalhos por editoras de renome, como Record e Nova Fronteira. Se pararmos para pensar, perceberemos que autores de porte – que jamais seriam considerados "de gênero" pelos críticos, público e até por si próprios – flertaram com a FC. João Ubaldo Ribeiro escreveu O Sorriso do Lagarto, para mm, uma clara referência/reverência à Ilha do Dr Moreau, de H. G. Wells; Novaes lançou nos anos 80 o romance futurista A Próxima Novela; Marcelo Rubens Paiva, em Blecaute, fez uma versão nacional dos romances sobre fim do mundo e, como eles, muitos outros venderam bem seus trabalhos de ficção especulativa, mas recusaram o rótulo de FC (assim como Margareth Atwood faz). O problema, então, fica claro: assim como os músicos de rock pesado que participaram do primeiro Rock In Rio recusavam título de "metaleiros", os autores mainstream não aceitam ser classificados em um gênero conhecido por sua alta população de discos voadores, foguetes e alienígenas verdes. Esquecem, claro, que o gênero é mais amplo que isso e abrange romances de peso como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, 1984, de George Orwell, Anthem, de Ayn Rand, A Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, ou Não Verás País Nenhum, de Ignacio de Loyola Brandão. Logo, é óbvio que a FCB existe, afinal, muitos autores mainstream escreveram dentro do gênero e há montes de exemplos de telenovelas, filmes e até discos que bebem na mesma fonte. 

Porém, é igualmente óbvio que ela não existe, pois poucos admitem que suas produções estão dentro do que eles crêem ser ficção cient‚fica. Eis porque, quando autores que assumem suas ligações com o gênero como Bráulio Tavares e Ivanir Calado, apresentam seus trabalhos às grandes editoras, evitam o rótulo "FC", e eis também o motivo do repúdio dos editores àqueles que, despudorados, apresentam seus textos como ficção científica "pura e dura". Por outro lado, é necessário percebermos que há uma veia dentro da literatura brasileira que não apresenta nenhum preconceito contra a FC ou qualquer outro gênero: a infanto-juvenil. Júlio Emílio Bráz, Sylvio Gonçalves, além do próprio Ivanir Calado não tiveram problemas em lançar livros de temática claramente FC voltados para crianças e adolescentes. E isso, é bom lembrar, remonta aos tempos de Monteiro Lobato.

Voltando à questão, a situação da FC no mercado editorial brasileiro talvez melhore quando os autores mainstream forem mais informados a respeito do gênero e os escritores de gênero menos limitados em seus gostos. Trata-se de ignorância numa rua de mão dupla.

Por que gêneros como Realismo Mágico e Policial teriam maior projeção?
Porque a FC é uma literatura de criação de universos e os outros, não necessariamente. O policial se aproxima do mainstream em sua construção de personagens (Ruben Fonseca, que ninguém duvida ser um escritor de gênero, seria, caso existisse uma tabela assim, um autor mainstream que lança mão de maneirismos do romance policial) enquanto a fantasia, graças à popularidade dos RPGs e à perenidade dos contos de fadas, não precisa ir muito longe na hora de descrever seus ambientes, afinal, todo mundo sabe como uma *faerieland padrão* deve parecer, com seus dragões, gnomos, magos, ogros e guerreiros mezzo-medievais. A FC, por outro lado, durante anos priorizou a originalidade na construção de universos em detrimento da profundidade de personagens, mola mestra da literatura "séria". Quando certos romances crescem na elaboração de personagens, como em O Sorriso do Lagarto, a crítica tende a não classificá-lo dentro do gênero (é sério, logo, não é FC). Ora, se levarmos em consideração que a FC não se restringe mais a uma literatura tecnológica e juvenil, englobando subgêneros como o Cyberpunk, Steampunk, Ribofunk e Alternate History, veremos que é quase impossível para um autor contemporãneo escapar de um ou outro truque do vasto arsenal do gênero ou mesmo a seu sense of wonder. Romances como V., de Thomas Pynchon, que lida com a possibilidade de uma imortal influenciando a sociedade durante todo o s⁄culo XX; Sobre Heróis e Tumbas, de Ernesto Sabato, com seu grupo de cegos illuminatti, ou Todos os Nomes, de José Saramago, onde uma biblioteca tesseract serve como base a uma distopia totalitária que estoca informação sobre todos os cidadãos, são típicos casos de literatura considerada mainstream mas que, a olhos treinados, são claramente FC. Por essas e outras, desde que me envolvi com FC literária, cunhei a frase "Tudo É FC", como uma maneira de valorizar o  gênero, transformando-o em espelho da produção atual.

Quais os principais autores de FCB, por subgênero, dos anos 80 até hoje? E as principais obras?
Agora correrei o risco de ofender alguns, mas vamos lá. Tenho de citar o Calife como o mais conhecido autor hard do Brasil, mas não entro no mérito de seus romances e contos. Bráulio Tavares é o melhor estilista de todos, criando uma narrativa de sabor regional, e seu Espinha Dorsal da Memória é indispensável. Fábio Fernandes é o mais completo, cuja temática varia do mais tradicional space opera ao cyberpunk radical. O dificílimo de encontrar Interface com o Vampiro é daqueles livros que ficam marcados na memória. O mais prolífico é Carlos Orsi Martinho, e sua antologia de estréia, Medo, Mistério e Morte, mescla horror, dark fantasy e FC como poucos. Gerson Lodi-Ribeiro tem, em minha opinião, seus melhores textos na seara da Alternate History, sendo a antologia O Vampiro de Nova Hollanda o melhor exemplo de seu trabalho. O versátil Ivanir Calado, escritor e artista plástico, trabalha muito bem com FC de cunho juvenil, mas o romance A Mãe do Sonho, menos FC e mais Dark Fantasy, é capaz de um sense of wonder dos melhores ao mesclar mitos amazônicos a um ambiente contemporãneo. Max Mallmann é um romancista competentíssimo, ágil e ligado a seu tempo. Se Síndrome de Quimera concoreu ao prêmio Jabuti, o romance seguinte, Zigurate, é um típico exemplo de boa FC pulp/brasileira. Fausto Fawcett é sensacional e seu trabalho que mais merece reconhecimento é, claro, Santa Clara Poltergeist, precursor do Cyberpunk brasileiro, com uma mistura multimídia de disco/livro/clipe.

E por enquanto, dentro de meus limites, parcos conhecimentos e leituras, é só.

3 comentários:

Ricardo Santos disse...

A entrevista já tem dez anos, mas há opiniões suas que valem até hoje. Os autores atualmente têm menos problema para se vender como autores de FC, mas acho que é o gênero que ainda sofre o maior preconceito no nosso mercado editorial. Será assim por que é o gênero que mais exige do leitor? Ou será por que os autores não estão sabendo seduzi-lo?

Octavio Aragão disse...

Oi, Ricardo. Olha, no que depender de mim, pelo visto, os leitores continuarão virgens. :-)

Leonardo Peixoto disse...

Esse texto me fez lembrar da época do ensino fundamental , quando alugava um livro do Sítio Do Picapau Amarelo , lia , devolvia para alugar outro , lia , devolvia para alugar outro e assim sucessivamente :)
A obra de Monteiro Lobato está em domínio público ? Se estiver , um autor do seu calibre poderia usar a ideia do Romeu Martins de Pedrinho criar uma versão brasileira da Liga Extraordinária lol