sábado, 2 de maio de 2015

Nosso fantástico conservadorismo

No mês passado, o prêmio Hugo – que galardeia os melhores livros e filmes de ficção científica e fantasia publicados nos EUA e no mundo – foi tomado por uma ala conservadora que, de maneira resumida, fez um lobby em prol de autores cuja temática mais convencional voltada a aventura, naves espaciais e impérios galáticos se distanciaria do que eles consideram gostos “liberais”, tais como sociologia e etnografia. Clamaram por histórias mais simples, com heróis e vilões bem marcados. Também reclamaram de uma eventual invasão de autores de terceiro mundo, ameaçando a hegemonia dos escritores anglo-saxões, que deveria ser restaurada. Vejam, apesar de não sermos diretamente citados, tal proposição de boicote também diz respeito, claro, a nós, autores brasileiros.

Sim, nós. Porque o melhor de toda essa balbúrdia é que ficou claro (ao menos para mim) que escritores brasileiros, assim como de qualquer parte do mundo, podem votar, indicar obras e até, pasmem, concorrer. Está lá nas regras. É válido e, pior, sempre foi. O mistério é por que motivo jamais, com uma ou duas exceções, nos inscrevemos no maior prêmio do mundo para literatura de gênero. Eu quero muito ver um monte de brasileiros e argentinos e peruanos e cubanos, mexicanos, guatemaltecos, uruguaios, paraguaios e chilenos inscritos no Hugo. Tudo isso foi bastante discutido e bem apresentado pelo Fábio Fernandes no Anticast e, obviamente, fui lá na página do Sasquan e me inscrevi como votante. Porém, me abstenho de conclamar meus colegas a fazer o mesmo.

Por quê?

Porque talvez, mesmo com todas as chances a nosso favor, não estejamos maduros para, como diz meu amigo Ivo Heinz, disputar uma vaga na Libertadores. Ainda nos preocupamos em escrever obras que não firam os pruridos do que acreditamos ser o “mercado”. Acreditamos que exista uma disputa entre subgêneros. A opinião de escritores infanto-juvenis a respeito do teor literário de nossos romances favoritos nos aborrece. E tudo isso só denota uma coisa: sequer chegamos à adolescência. Produzimos histórias cuja ética simplória replica ao infinito os clichês dos contos de fadas e a jornada pseudocampbelliana do herói de nem tantas faces assim.

Nada contra as histórias simples, com moral clara. Ninguém gosta mais de super-heróis do que eu, mas se o grosso de nossa produção é composto por sagas maniqueístas e formulaicas, convenhamos que existe um caminho até a maturidade.

Em 1978 (ou seja, há muito tempo, numa galáxia distante para a maioria das pessoas que gosta de Jogos Vorazes em 2015), o questionador Michael Moorcock, um escritor britânico que foi menos publicado no Brasil do que deveria, escreveu um texto que, entre outras coisas, poderia ser interpretado como manifesto anti-Star Wars chamado Starship Stormtroopers que, basicamente, questionava o motivo de tantas obras ficcionais cultivarem ideais conservadores, para não dizer totalitários ou mesmo nazistas.

Star Wars carries the paternalistic messages of almost all generic adventure fiction (may the Force never arrive on your doorstep at three o'clock in the morning) and has all the right characters. it raises 'instinct' above reason (a fundamental to Nazi doctrine) and promotes a kind of sentimental romanticism attractive to the young and idealistic while protective of existing institutions. It is the essence of a genre that it continues to promote certain implicit ideas even if the author is unconscious of them. In this case the audience also seems frequently unconscious of them

Daí vem as perguntas; quantos de nós, autores de ficção de gênero do Brasil, concordam com os conservadores que invadiram o Hugo? Quantos de nós acreditam que brasileiros não podem, não devem ou não sabem fazer ficção de gênero no mesmo nível daquela produzida lá fora? Quantos de nós ainda acham que os últimos e melhores exemplos da FC & Fantasia mundial foram produzidos na época de Asimov, Bradbury, Clarke, Dick, Heinlein, Herbert e Tolkien? Quantos de nós merecem concorrer ao Prêmio Hugo?

Enquanto a maioria das respostas para essas perguntas continuar ecoando uma mentalidade colonizada e autodepreciativa, conivente com o papel no qual alguns primos do norte nos querem, acredito que não haverá lugar para nós no pódio que merecemos.

Porque, tenham certeza, somos dignos.

E não é de hoje.

5 comentários:

GCGoulart disse...

O conservadorismo que pede por histórias mais "Philip K. Dick" e menos Asimov/Herbert é opinião acertada. A composição de personagens esféricas como em Herbert (mas não como em Asimov) parece estar como urgência. Porém, se nos fiarmos a estes dois autores temos provas que uma boa sci-fi é, antes de tudo, uma categoria que desafia. Ao repudiar sagas "de" naves, viagens espaciais e supostamente pedir por livros com "lição de moral" não vinga. Pois há exemplos cabais que livros de primeiro nível foram construídos nas duas vertentes. Quanto ao fato de um preconceito aos "terceiromundistas" é fácil ver que ele não é de hoje: vide a indústria americana que aceita um escritor não-norte-americano (mas de lingua inglesa (o pessoal do UK estão lá aos montes), enquanto ao resto do mundo tem espaço para.... desenhar, artefinalizar ou colorir. Agora: PENSAR a história? Nécas! A imagem que fica é que o mercado principal parece não aceitar uma visão de mundo diversa da própria. Não é só um erro, mas uma perda para todos: a pluralidade fica comprometida. Um belo e assertivo texto, caríssimo.

Abs, signa:

Gustavo Goulart.

Octavio Aragão disse...

Fala, Gustavo.
Acho que já passou da hora de roubarmos o show.

Temáticas Jurídicas disse...

Arrasou! Parabéns, amigo!

Um abraço fraterno,

H.

Octavio Aragão disse...

Valeu pela força, Hide!

Leonardo Peixoto disse...

Esse pensamento retrógrado me fez lembrar que tentaram boicotar Star Wars : O Despertar da Força devido o fato dos protagonistas serem um negro e uma mulher !
Então A Mão que Pune será divido em dois igual a último filme de série baseada em livros ?