Eu (daqui por diante, denominado apenas como "O") – A senhora está na fila?
Senhora com cara de ameixa (daqui por diante, denominada como "SCA") – [Olhada de cima em baixo] Estou.
O – Obrigado.
Senhora com Guri Levado do Diabo (daqui por diante, identificada como "SGLD") – Para, Joãozinho. Vai cair daí, menino. Sossega. Já viu isso, senhor? Não para!
O – Tudo bem. Quando chegar a adolescência vai sumir de vista. Mal vejo o meu de 15.
SCA – Neto?
O – Não, filho.
SCA – Neto, né?
O – Não. Filho.
SCA – Filho?
O – [Sorriso reto, tipo faca de churrasco] Fi. Lho.
SGLD – Como assim, o senhor não vê seu filho? Para, Joãozinho. Olha que vou chamar seu pai.
O – Ah, ele se tranca no quarto. Às vezes mal sei quando ele está em casa.
SGLD – Mas que absurdo. Meu marido não deixava as filhas fazerem isso.
O – Ah, é mesmo? [Sorriso ganhando contornos de foice da bandeira da Rússia]
SGLD – Elas começaram com essa conversa de televisão no quarto e ele logo falou "vamos acabar com isso! Quero todo mundo comigo, na sala, vendo o Jornal Nacional". Pronto, acabou a palhaçada.
O – Claro, elas deixaram de fazer o que queriam e passaram a ouvir a litania de São Roberto Marinho. Tem certeza que essa foi uma tática interessante para reunir a família?
SGLD – [Olhos arregalados, gagueira] E-era o que tinha na época, eram os anos 70. P-para com isso, Joãozinho, menino danado.
O – Eu sei. Estive lá. Mas ninguém me obrigava a assistir nada, não senhora. Ainda acho que os guris hoje têm opções melhores com todos esses blogs e sites e o Youtube.
SGLD – Ãh… bom, por esse lado, talvez… mas não está certo deixar os filhos sozinhos.
O – Concordo, tem tanta coisa que não está certa, né? Mas cada um vive a vida como pode ou quer [abre o livro, volta a cabeça para as páginas. SGLD sai correndo atrás do moleque. Desaparece no horizonte de eventos]
SCA – O senhor está lendo o quê?
O – [Levanta a cabeça leeeentameeeente. Sorriso como a lua em solstício de inverno. Bota marcador entre as páginas. Fecha o livro. Entrega o volume de mais de 700 páginas nas mãos enrugadas de SCA, que não sabe o que fazer com o livro pesado]
SCA – [Observa a capa, onde se lê em letras garrafais amarelas sobre fundo verde "A Verdadeira História da FICÇÃO CIENTÍFICA] Sobre o que é?
O – [Sorriso afiado como a guilhotina que decapitou Robespierre] Está na capa, senhora.
SCA – Ah… Ficção científica [devolve o livro como se corresse o risco de alguma contaminação].
O – Obrigado [abre o livro, volta a cabeça para as páginas]
SCA – O senhor ja leu todo?
O – [Levanta a cabeça leeeentaaaaaaaaameeeeeeenteeeeeeee. Sorriso como uma segadeira automática em dia de colheita em pleno verão. Bota marcador entre as páginas. Fecha o livro] Senhora, como pode observar, o marcador está no meio do livro. No. Meio.
SCA – Ah. É mesmo. Desculpe.
O – Sem problemas [Abre o livro, volta a cabeça para as páginas].
SCA – Meus parabéns, viu? Com um avô inteligente assim, aposto que o NETO adora ler.
[Toca o sinal do colégio. Todas as velhinhas correm como lebres para entrar ao mesmo tempo pela porta por onde apenas uma, com sorte, passará com vida. Fecha o livro. Esquece de marcar a página]
7 comentários:
Má te transformaram em "vô" meio cedo, não, sêo Octávio? Rsrsrsrsrsrssrssrsrsr!
"Avô" é a mãe.
"Mas você já leu todos estes livros?".
O que você responde, meu Deus???
- Fábio Ochôa
Já. Todos. Duas vezes.
Se há interesse de caráter sexual: "Ainda não." Em todos os outros casos eu uso a resposta do Umberto Eco: "E muitos outros!"
O que as pessoas esperam ouvir é a resposta óbvia, que seria "não", para que ela emendem com outra pergunta, que sempre é "então, para que tantos?". Responder "sim, todos, mais de uma vez" geralmente encerra a conversa inútil.
Postar um comentário