domingo, 2 de outubro de 2016

As mazelas da nostalgia

Fui apresentado a um vídeo que, de maneira edulcorada, recorda a quem nasceu nos anos 60 como aquela década era "abençoada", e como, em uma inversão de causa e efeito digna dos melhores prestidigitadores, transforma a indigência, a falta de perspectivas e até a violência doméstica em pontos positivos da construção do caráter de uma geração, em um exercício de auto-indulgência que beira a esquizofrenia.



Diante dessa insanidade descabida, eu, que nasci nos anos 60, mas nem por isso tenho problemas de memória, respondo:

1) Não foi "maravilhoso". Foi em grande parte um pesadelo, principalmente para quem tinha imaginação, com dificuldade de acesso às diversas coisas que eu adorava e "sabia" que "não eram para mim". Hoje, é possível fazermos filmes com celulares e meu filho de sete anos ensaia filmetes nos estilo "found footage" em seu iPad.

2) Pais batendo em filhos sempre foi um absurdo. Era errado e sempre será. Não há nada de desculpável em "paisicopatas" e quem acha que "apanhei, mas foi bom", não apenas sofreu na carne como, provavelmente, foi vítima de lavagem cerebral.

3) Ter de conviver com adolescentes violentos e sociopatas mirins por total falta de opção e ser obrigado a sair na porrada todos os anos para afastar os valentões era um saco. Vai aqui um caso que recordei recentemente no Facebook e trago para o blog, só para termos noção de como as coisas aconteciam e eram "normais" nos 60 e nos 70.

O ano era 1977. Estava no ônibus do colégio Estácio de Sá, estacionado dentro da Fortaleza de São João, na Urca, cursando a sétima série ginasial, observando a saída tumultuada de meus colegas. 
Um de meus conhecidos de turma, um garoto gordinho e com temperamento, na falta de palavra melhor, "ígneo", sofria o que hoje chamaríamos de bullying de um guri de seus 14 anos, não repetente, mas com certeza com trejeitos psicóticos. O adolescente o segurava pelo pescoço e aplicava uma série de cascudos bem fortes, com direito a soco na cara e variantes, sabe-se lá por qual motivo, talvez porque a vítima fosse mesmo inconveniente, talvez porque essa era a única maneira com a qual um garoto mais velho sabia se relacionar com um menino mais novo e espevitado.
Bom, o humilhado, depois de uma sova daquelas, ficou largado no chão, chorando, sujo de terra ou fosse lá qual indignidade houvesse grudado em seu uniforme sebento. Esperou o agressor se afastar alguns metros, levantou e – para meu horror – arremessou um pedaço de tijolo contra o adversário. Nesse momento, lembro de ter ficado em dúvida se preferia que o projétil atingisse o alvo ou não, porque as consequências, qualquer o resultado, seriam terríveis.
Não deu outra. O menino errou a cabeça do outro por meros dois centímetros, atingindo um container de entulho e causando um estrondo que, para meus ouvidos, parecia um tiro de canhão.
O agressor, assustado com o barulho e com a repentina percepção que quase teria se ferido seriamente, tomado por ódio assassino, agarrou o tijolo, voltou ao inimigo e, com uma gravata imobilizadora, esfacelou a arma no crânio do menino até que o sangue escorresse.
Só então, depois do guri ensanguentado, outras crianças correram em auxílio da vítima – nenhum adulto à vista, sabe-se lá por que motivo – e o arrastaram de volta ao colégio. Nada aconteceu ao agressor, pois como estava do lado de fora da instituição, não seria responsabilidade da diretora, a mesma que depois da aula fazia uma "ronda" pelos arredores do colégio para flagrar algum eventual recalcitrante fumando ou cometendo sérias infrações, como namorar, por exemplo, envergando o sacrossanto uniforme, e o agredido, apesar de medicado, também ficou por isso mesmo. Dia seguinte, aula normal.
Assim era o dia a dia em um colégio estadual carioca na década de 70 (aquele tempo que os saudosistas de direita apontam como "mais tranquilo e civilizado"), quando a educação, apesar de alguns descalabros típicos da ditadura como OSPB e Educação Moral e Cívica, ensinava Artes, Educação Física e Música – e, não, amigos, não me interessa qual governo tenha proposto essa sandice. Era uma má ideia então e hoje é ainda pior.


4) O fato de hoje mertiolate não arder e existirem leis anti-bullying não altera a verdade quando afirmo que antigamente era uma selva, difícil e dura, principalmente para minorias e, com destaque, para crianças. Os problemas de hoje são outros, talvez decorrentes de certo amaciamento na construção do caráter, mas não significa que os de ontem eram "moleza". Não eram. E se chegamos ao desenvolvimento que temos hoje, em grande parte foi porque lutamos para que nossos filhos não passassem por muitas das dificuldades que vivenciamos naquela época.

2 comentários:

Leonardo Peixoto disse...

Dois artigos em dois dias seguidos , beleuza !!!
Sobre seu texto e o vídeo , a maioria das pessoas sempre acha que sua época de infância foi a melhor das épocas . Mas cada período do tempo teve seus altos e baixos , suas glórias e vergonhas , suas vitórias e derrotas . É bom lembrar do passado , mas não podemos esquecer do presente , senão perdemos o futuro .

José Antonio de Oliveira disse...

Certamente houveram coisas memoráveis. Assim como houveram coisas terríveis. O erro é edulcorar um passado pois se o presente não é o que gostaríamos, retira-se a responsabilidade de quem somo ou o que fizemos. Só que ninguém vive no passado e o que já foi não voltará, só como pastiche e simulacro. Essa bobajada pastosa e melosa só serve de auto-consolo para quem quer impor esse passado (recheado de dores, mortes, injustiças, traumas e violências). Sim, essas gerações que parecem ter perdido o fio da meada (e o poder que achavam que tinham) são parte de uma minoria rancorosa e frustrada.