quarta-feira, 23 de outubro de 2019
Philip K. Dick - Mundo de Papel, por Lúcio Manfredi
Minha descoberta de Philip K. Dick tem uma história e uma pré-história.
Desde pequeno, a minha relação com o mundo sempre foi marcada por uma certa ambivalência. A realidade não me parecia ter realidade suficiente. Eu sentia que, a qualquer momento, o mundo poderia fugir sob os meus pés e eu mesmo me parecia tão irreal ou semi-real quanto esse mundo cuja evanescência me perturbava muito antes que eu soubesse o que quer dizer "evanescência".
Entre os três e os nove anos, essa sensação de falta de solidez nas coisas fazia com que todas as noites eu tivesse pesadelos horríveis, dos quais acordava gritando sem parar, e até os doze anos, eu era simplesmente incapaz de me lembrar do meu próprio rosto. Precisava olhar no espelho sempre que quisesse saber como eu era. Muitos anos mais tarde, vim a saber que os psicólogos denominam esse estado de espírito de ‘desrealização’ ou ‘despersonalização’, mas prefiro a designação muito mais poética de Julio Cortázar: "o sentimento de não estar de todo".
Não é de Cortázar, porém, que eu quero falar, mas de Philip K. Dick.
Eu tinha 12 anos quando chegou aos cinemas a versão original de Blade Runner. Nunca tinha ouvido falar de Ridley Scott e não fazia a menor idéia de quem era Philip K. Dick. Mas já era apaixonado por ficção científica, o que, para mim, nessa época, significava antes de mais nada Asimov e Clarke.
O spot do filme que passava na tevê me deixou galvanizado, especialmente aquela imagem clássica do aerocarro subindo nos céus de uma Los Angeles chuvosa e em trevas permanentes. Corri para o jornal para ver os horários e sessões, e meu entusiasmo foi recebido com a proverbial ducha de água fria.
Blade Runner era proibido para menores de dezoito anos (ou era dezesseis? A memória já vai ficando para trás, junto com os milhares de neurônios que a gente começa a perder diariamente após os trinta). Dois anos mais tarde, isso não teria sido um problema: eu já teria descoberto que sempre é possível driblar a censura e entrar num filme proibido, especialmente nos cinemas do centro. Mas ainda não sabia disso quando Blade Runner estreou e o filme adquiriu para mim uma espécie de aura mítica, um paraíso proibido, fora do alcance dos meus olhos mortais.
Pouco tempo depois, ao passar por uma banquinha de livros nas imediações de Perdizes (ou era em Pinheiros? a memória, etc.), dei de cara com o romance que tinha dado origem ao filme: O Caçador de Andróides, de Philip K. Dick, com aquela capa horrenda que a Francisco Alves costumava colocar em seus livros. A capa não importava. Era a história do filme, o filme ao qual eu não podia assistir. Comprei o livro e comecei a ler no metrô mesmo, a caminho de casa. Não, não foi uma revelação. Os céus não se abriram, os mortos não saíram de suas tumbas e eu não tive nenhuma epifania. Sim, era uma história fascinante, suficientemente próxima da ficção científica à qual estava acostumado para eu gostar do que estava lendo e, ao mesmo tempo, diferente o bastante do que eu conhecia para me animar a buscar outros livros do autor. Mas não foi um livro que mudou a minha vida.
A revelação e a epifania, no entanto, vieram com o livro seguinte de Dick que me caiu nas mãos: Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, na edição de bolso das Publicações Europa-América. Já nem me lembro onde foi que o comprei. Minhas recordações desse livro têm início com o instante exato em que abri a primeira página e comecei a ler. Estava de novo no metrô, voltando de onde quer que eu o tenha adquirido. Reconheci imediatamente o estilo do autor, a maneira peculiarmente irônica com que Dick construía suas frases, a forma como ele invertia os lugares-comuns, como, por exemplo, ao mostrar pessoas que procuravam os psiquiatras, não para se curar, mas para ficarem doentes. Era divertido, era atraente, dava vontade de continuar lendo, mas não muito mais que isso. Até chegar ao terceiro capítulo, quando os colonos ingerem uma droga e entram no mundo de Perky Pat. Um arrepio de unheimlich me subiu pela espinha. Eu conhecia aquela sensação. Aumentei o ritmo da leitura. Barney Mayerson e depois Leo Bulero presos no mundo de Palmer Eldritch, aquele mundo alucinatório que você *sabe* que não é real e do qual, mesmo assim, não consegue escapar. A figura aterrorizante de Palmer Eldritch, tão semelhante aos fantasmas que povoavam meus próprios pesadelos de infância. Sim, eu conhecia aquele mundo. Era o meu mundo.
Daí para a frente, tratei de procurar e ler com voracidade tudo o que conseguia encontrar desse autor. Fui descobrindo coisas sobre ele, a experiência mística de 2-3-74, seus surtos esquizofrênicos e ataques de paranóia, a faculdade de filosofia interrompida (como eu mesmo faria alguns anos mais tarde), sua morte em 1982, no mesmo ano em que eu tentara em vão assistir Blade Runner... Foi graças a Philip K. Dick que eu tomei contato com o gnosticismo, uma forma de filosofia religiosa que, mais do que qualquer outra, resume a minha atitude perante o mundo. Dick também me levou a Jung, outra influência determinante no curso da minha vida. E, evidentemente, marcou a minha maneira de escrever. Certa vez, um amigo que conhecia todos os meus contos e estava lendo O Homem do Castelo Alto comentou que agora entendia porque eu gostava tanto dos livros de Philip K. Dick: existiam semelhanças notáveis (palavras dele) na maneira de nós dois vermos o mundo. Ainda considero o melhor elogio que já recebi como escritor...
Para muitos leitores, o primeiro encontro com seu autor favorito é um evento que muda o curso de suas vidas. Para mim, depois de descobrir Philip K. Dick, a realidade continuou sendo exatamente como era antes - incerta, evanescente e nada confiável. Mas, agora, eu sabia que não estava sozinho.
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