quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Choque de culturas: a sociologia da Guerra dos Mundos


Por Octavio Aragão

Segundo James Clifford, estar envolvido pela “cultura” no século XIX significava algo diferente do que se compreende hoje. Cultura seria um único processo evolucionário, tendo o homem europeu ocidental como ápice desejável e inevitável de toda a humanidade. Na virada do século, porém, o termo ganhou novos contornos, principalmente se usado no plural. “Culturas”, hoje, dá a entender uma multiplicidade de mundos dentro do mundo, modos de vida distintos, mas igualmente significativos, deixando de lado a idéia de uma hierarquia e de superioridade. A etnografia nos apresenta a noção de Cultura Material, por meio da qual poderíamos construir avatares lógicos de grupamentos sociais baseados na análise de seus artefatos, de suas ferramentas.

Trazendo tal lógica para o cenário de A Guerra dos Mundos, testemunhamos o choque entre duas culturas distintas: uma que que “cheira” a realidade, a classe operária norteamericana, com seus artefatos reconhecíveis, descartáveis (ou nem tanto, como nos afirmam as primeiras imagens de guindastes, que remetem a artrópodes metálicos gigantes, monstros que conhecemos); outra alienígena, estranha, invasora, aparentemente cruel e insensível, que usa ferramentas baseadas no número três, de difícil assimilação por humanos.

A guerra mostrada por Spielberg não tem um aspecto geográfico acentuado, mais parecendo um embate entre culturas materiais que identificam seus portadores mais e melhor que suas aparências físicas. É admitido pelo cineasta e pelos membros de sua produção que os tripods, veículos alienígenas, foram pensados e construídos como “personagens”, “criaturas” temíveis, com movimentos fluidos e componentes biomecânicos, o que apela para nossa tendência de animização. Longe da sedução de Galatéa, a estátua viva, os tripods extraterrestres nos colocam em nível inferiorizado, não apenas pelo gigantismo, como pela impossibilidade de discernirmos seus processos de funcionamento. Por causa dessa dificuldade, inicialmente identificamos os alienígenas com seus veículos, da mesma maneira como os astecas imaginaram que os recém chegados cavaleiros espanhóis eram indivíduos centaurinos, mescla de homem e cavalo. Em termos contemporâneos, seria o mesmo que cada pessoa fosse identificada por seu automóvel.

Mas será que não são? Segundo a publicidade, carros, assim como qualquer produto de consumo na cultura de massa, são sempre imbuídos de significados e valores sociais, que acabam sendo agregados à personalidade do usuário. Os tripods também seriam ícones de sua própria cultura e, no processo de imposição colonizadora, destróem os rivais da cultura local, sejam religiosos, como a igreja demolida na primeira cena de invasão, de status quo – os automóveis, mansões e aviões –, ou de poder político, como a estátua da milícia, símbolo da resistência civil norte americana contra o Império Britânico, coberta pela erva vermelha.

Cabe notar que a planta cor de sangue, originalmente concebida por H. G. Wells, funciona como uma invasão paralela, de origem biológica, em contraponto ao choque tecnológico. Poderia até ser uma representação óbvia de invasão política, mas foi ignorada na primeira versão cinematográfica de 1953, na qual a relação com uma possível invasão soviética dos Estados Unidos era evidente. De certa maneira, ainda bem que não ocorreu, pois quando escreveu o romance, Wells ainda era um socialista fervoroso.

É sempre bom perceber que o choque, o espanto entre culturas díspares quando confrontadas com artefatos inidentificáveis, sempre ocorre em mão dupla. A curiosidade e o assombro com que os alienígenas examinam (e fogem) de uma bicicleta, exemplifica a dualidade da estranheza entre as duas civilizações. O artefato típico da cultura material da Terra é tão estranho e potencialmente perigoso a eles quanto o tripod e o pseudópode em forma de serpente é para os humanos do filme (e para o público espectador também). Aliás, se analisarmos com atenção os apetrechos dos invasores, perceberemos que, apesar das formas biomecânicas imperarem sobre a rigidez dos ângulos agudos, não há vestígio evidente de utilização da roda em seus aparelhos. Talvez por isso suas máquinas de locomoção apelem para o questionável equilíbrio sobre três pontos de apoio alternantes.

De acordo com Clifford Geertz, a religião, os símbolos sagrados sintetizam o ethos de um povo. Assim, não é de se estranhar que a questão da sobreposição dos dos ícones religiosos seja uma constante em todas as versões da obra, com possível exceção da peça radiofônica de Orson Welles. No romance, o personagem do padre é um homem aterrorizado, à beira da histeria, que põe em risco a vida do protagonista e acaba agredido, silenciado à força e abandonado à própria sorte pelo narrador. Parece claro que Wells deixou transparecer nessas passagens suas opiniões a respeito da igreja e seus representantes. Em 1898, ele ainda não havia se filiado à Sociedade Fabiana, de cunho socialista moderado, mas já era um defensor da literatura de conteúdo social libertário. Na produção de George Pal, de 1953, o pastor também aparece. Mas, além de ser o pai da protagonista, o que já lhe garante uma posição de destaque no time dos “mocinhos”, é um pacifista cheio de boas intenções, que, ao ser incinerado pelos invasores, transforma o medo do espectador em ódio potencial. Afinal, os alienígenas desintegraram um homem bom e desarmado. Não é a toa que, nesse filme, uma igreja vira palco para a reunião dos humanos sobreviventes, como se suas paredes pudessem protegê-los da fúria devastadora das máquinas que põem por terra símbolos arquitetônicos do poder dos EUA, como a Casa Branca e os arranha céus de Nova York.

No filme de Spielberg, parece haver num primeiro instante um retorno à otica wellsiana, pois uma igreja é o primeiro edifício a cair, mas ao final, no monólogo de Morgan Freeman, percebe-se uma reafirmação de um Poder Divino que protegeria a humanidade mesmo que sua cultura material fosse totalmente destruída. Esse simbolismo permeia todo o filme. Os aliens de Spielberg, ao brotarem do solo, podem ser lidos de acordo com a visão dos “anjos caídos” de Harold Bloom, ganhando uma conotação demoníaca mais evidente, que combina com a litania em tom religioso que abre e fecha o filme. Enquanto “deimons”, ou anjos caídos, os aliens de Spielberg parecem reencarnações do Satanás de Paulo, seres superiores ao homem, mas ainda assim equívocos. Capazes de corrupção e destruição, mas condenados ao fracasso. Santo Agostinho, seguindo São Paulo em sua suspeita a respeito da natureza traiçoeira de anjos em geral, desenvolveu uma lógica para a ira dos demônios contra o homem: a inveja, o orgulho. Não é a toa que os aliens de Spielberg são invasores. Nós não sabemos o que desejam, mas certamente querem algo que nos pertence. Invejam alguma coisa e são orgulhosos o suficiente para acreditar que podem chegar aqui e tomar sem pedir licença.

Finalizando, torna-se indispensável apontar que, de acordo com alguns autores, H. G. Wells teria escrito o romance como uma sátira do imperialismo britânico, mais ou menos como se dissesse “ei, Família Real, coloquem-se no lugar dos africanos e indianos”. O filme de Spielberg, confeccionado à sombra dos ataques terroristas ocorridos em 11 de setembro de 2001, perde muito da ironia do original, pasteurizando a imagem do invasor como “algo a ser combatido”. Porém, ainda é um veículo interessante para que se perceba – e questione – a postura monolítica da autopercepção do norteamericano médio (e, por que não, no brasileiro médio também) que, além de tudo, é o público alvo de produções hollywoodianas desse calibre. É por intermédio de clichês que os personagens se referem tanto à Europa, quanto a terroristas (leia-se muçulmanos) e o medo do diferente, do radical que põe em risco o mundo conservador, previsível e confortável, mesmo que medíocre, é o cerne da história.

Não se trata de uma Guerra dos Mundos, mas de uma batalha de identidades – onde entram em choque preconceitos e idéias pré-estabelecidas – travada todos os dias, dentro de cada um.

3 comentários:

Samir Machado disse...

Ótimo texto, Octávio.
Muito interessante a questão animista dos tripods. O que, por sinal, é uma característica forte dos filmes do Spielberg, (penso direto no caminhão de "Encurralado", mas não são os únicos casos).
Acho Guerra dos Mundos é um dos melhores filmes dele, e um dos melhores filmes a interpretar o clima pós-11 de setembro da década.

Octavio Aragão disse...

Oi, Samir.

Realmente, o animismo no universo spielberguiano é uma constante e inclui, além do caminhão monstro de Encurralado, a nave mãe de Contatos Imediatos e, claro, o tubarão “do mal”. Talvez isso merecesse outro artigo.

E concordo quanto ao aspecto 11 de setembro do filme.

Leonardo Peixoto disse...

Realmente o animismo nos filmes do Spielberg merece ser tema de um artigo !
Outro bom tema seria a ficção alternativa , que você ajudou a popularizar com A Mão Que Cria , livro que você deve saber que gostei , já que estou ansiosíssimo pela continuação :)