domingo, 29 de novembro de 2009

O Futuro a Deus Pertence: resenha de Futuro Presente - dezoito ficções sobre o futuro













Conheci Nelson de Oliveira em 2008, quando participamos de uma mesa do evento Invisibilidades, no Itaú Cultural, que reuniu diversos autores relacinados à produção de ficção especulativa. Tive uma ótima impressão do Nelson e sedimentei a expectativa de que estava diante de um escritor talentoso, o que se confirmou quando terminei a leitura de Naquela Época Tínhamos Um Gato, coletânea de contos ágeis com um quê surreal que muito me agradou. Foi com satisfação que antecipei alguns de seus projetos, como os Portais Stalker, Solaris, Fundação e Fahrenheit, revistas de contos que funcionariam como um campo de testes para Nelson mostrar ao mercado editorial que havia um número razoável de autores dedicados ao gênero e que não seria uma má idéia dar vazão a esse material. Um dos resultados dessa empreitada foi a antologia Futuro Presente, lançada pela editora Record este ano.

O quadro de autores reunido nas 415 páginas perfaz um mosaico de intenções e origens que vão da cultura blogueira tão em voga nos últimos anos à chamada Primeira Onda da Ficção Científica brasileira, da década de 60. A intenção - não assumida, mas pressentida – parece correr em direção a uma “validação” da qualidade do gênero, que sofre muito preconceito no Brasil, por intermédio dos participantes no livro, alguns deles vencedores dos mais respeitados concursos e prêmios literários, incluindo o da Biblioteca Nacional e o Jabuti.

Essa estratégia, porém, não é novidade. Gumercindo Rocha Dórea, editor de algum renome nos anos 60, fez coisa parecida convidando gente do porte de Dinah Silveira de Queiroz, Rachel de Queiróz, Antonio Olinto, Ruy Yungman, Leon Eliachar e Alvaro Malheiros entre outros, cada um dono de obra de valor inquestionável e de alta qualidade literária para se aventurarem em contos de ficção científica. Infelizmente, apesar do surgimento de autores de inegável talento, como José dos Santos Fernandes, e algumas histórias sensacionais - A Organização do Dr. Labuzze, de André Carneiro, por exemplo – tal iniciativa não conseguiu agregar ao gênero o respeito e a admiração devida aos escritores, e os motivos talvez sejam os mesmos pelos quais a antologia Futuro Presente não é satisfatória em sua totalidade.

Em primeiro lugar, a maioria dos envolvidos parece não ter intimidade com o braço literário da ficção científica, desenvolvendo suas idéias a partir de conceitos explorados e massificados pelo cinema, uma mída que, em termos temáticos, está cerca de 20 anos atrasada. Ou seja, enquanto a literatura de gênero hoje está ocupada com históras regadas a bioengenharia e física quântica, que pensam o desenvolvimento de novas linguagens e universos adjacentes, os escritores parecem longe de arriscar uma carícia ao gato de Schrodinger, menos por medo de se arranhar e mais por sequer perceber que o bichano pode estar vivo dentro da caixa. Assim, referências a termos popularizados pelo cinema e por seriados de TV como “replicantes” referindo-se a andróides (pg 313), “mísseis fotônicos” (pg. 79), ou temáticas usadas a exaustão desde os anos 50, como as naves geracionais e a “terra devastada”, como diria Mary Elizabeth Ginway, campeiam pelas 18 histórias.

Outro ponto digno de nota é a desinformação científica, que faz com que um autor acredite que um asteróide do tamanho da ilha de Chipre, ao cair na Terra, cause a desintegração da Malásia e não o fim do planeta (pg. 79). Esse engano é apenas um dentre inúmeros e concordemos que, em contos que se vendem como ficção científica, o desconhecimento da ciência leva ao fracasso inescapável.

Por último, mas não menos importante, um ponto que me causou estranheza. Seria de se esperar que um livro coalhado de autores premiados e de reconhecido mérito literário não apresentasse um número surpreendente de ecos, repetições e períodos aparentemente mal construídos. Afinal, a grande acusação ao gênero sempre foi sua baixa qualidade literária, seu enfoque na “peripécia” em detrimento do “personagem”, e, pelo que entendi, uma das intenções da antologia era mostrar que, além de “viajantes”, os ficcionautas poderiam ser literatos de primeiro time. Posso estar enganado, pois não sou um crítico literário, mas a frase “abotoou os dois botões de cima do camisão de algodão” não me caiu bem.

No mais, acrescento que há boas peças de ficção e fantasia, algumas com bossas surrealistas, outras rachando uma FC hard, mas no cômputo geral, enquanto leitor, autor e aficcionado que acredita que o futuro do gênero no Brasil reside no sucesso de cada um, esperava mais e melhores blues.

***

Seguem agora notas que escrevi durante a leitura de cada conto. Não tive a pretensão de criticá-los profissionalmente, apenas elencar impressões.

Aníbal, de Andréa Del Fuego, é um festival de imagens instigantes que provocam um maravilhamento muito particular e especial, mas percebe-se que a autora possui pouco ou nenhum embasamento científico para sedimentar suas propostas dentro da ficção científica;

Luiz Bras, em Nostalgia, apresenta um texto mítico, rítmico, cacofônico e que, com algum esforço complementar, daria um bom romance, ou vários. A parte dois, especificamente, produziu em mim o efeito de uma epifania, dando uma virada de qualidade em relação à parte anterior, coalhada de repetições aparentemente não intencionais de termos (pg 29) e fonemas (pg 30);

Brand New World, de Luiz Roberto Guedes, pode ser qualquer coisa, menos “brand new”. Utiliza clichês do gênero sem muita intimidade ou paciência para descortinar os motivos pelos quais temas batidos como a diáspora humana pelo espaço são fascinantes. Mais do mesmo num conto moralista e que delata e defende os gostares do autor com citações pouco sutis, tais como a IA com o rosto de Isabelle Adjani, o que quebra o envolvimento, gerando desinteresse por parte do leitor;

O uso da semiótica como âncora narrativa em Gobda, de Maria Alzira Brum Lemos, é o ponto forte deste conto, mas o final apressado e superficial compromete o que poderia ser uma boa história no estilo de Richard A. Lovett.

Ausländer remete a contos de Stephen King e Ray Bradbury, mas com diálogos pouco críveis. Ainda assim, Mustafá Ali Kanso constrói um bom conto sobre alienígenas transmorfos e paranóia adolescente;

Final auto complacente para uma criação de cenário sensacional impede que O Vírus Humano 2, de Maria José Silveira, seja “O” gande conto de ficção científica do livro. Falhou;

O decano da FC brasileira, André Carneiro, comparece com Paralisar Objetos. A história vai para um lado, vai para outro e termina fechando de maneira insólita e inesperada, num círculo que, se não é perfeito, ao menos é enlevante na forma e no método literário. Infelizmente, não traz novidades para quem conhece a obra do mestre, insistindo no tema da obsessão por uma mulher misteriosa envolvida em atividades aparentemente paranormais;

Descida no Melström, de Roberto de Sousa Causo, é, talvez, o conto mais assumidamente pulp de toda a coletânea, cheio de cenas de ação e aventura. Pena que o vocabulário rebuscado e, em alguns momentos, improvável prejudica a imersão do leitor. Outro ponto fraco é a construção psicológica dos personagens, por vezes rasa, principalmente no que diz respeito ao protagonista, um supersoldado íntegro, cercado de superiores incompetentes e encarregado de uma missão suicida, em contraposição ao cenário detalhado;

O Motim, de Edla van Steen, tem belas imagens, mas é prejudicado por um final ingênuo. Tem jeito de fábula, porém os teores morais foram atenuados pela falta de impacto;

Certamente Deonísio da Silva divertiu-se imaginando este Depois da Grande Catástrofe, no qual lista referências e espelha o cenário sociocultural do Brasil contemporâneo. O problema é que o texto se assemelha àquelas piadas que inebriam o intérprete a tal ponto que faz seus risos afogarem o humor da audiência;

Tremenda bola na trave é Espécies Ameaçadas, de Márcio Souza. O que poderia ter sido um “Dr Moreau no Brasil” vira uma historinha ruim sobre nazistas imortais. Fraco, mas com uma energia que remeteu, nem sei bem por quê, ao excelente romance A Mãe do Sonho, de Ivanir Calado;

História de Uma Noite é uma crônica? Tem sabor de crônica, mas se pretende um conto de FC e, como tal, escorega num grave defeito: Charles Kiefer não exorciza o “presente”. A exemplo de Brand New World e Depois da Grande Catástrofe, este é outro conto que polui sua visão de futuro com referências constantes a ícones culturais contemporâneos. Mas o pior, cá entre nós, é que não há a tal história citada no título. Isso até pode funcionar bem em outros gêneros, mas não na FC;

As Infalíveis H, de Paulo Sandrini, é mais uma idéia interessante, mas com final anticlimático, indigno do potencial do conceito. A construção do texto, cheio de “obvio” e “claro que”, também não ajuda. A impressão que dá é que foi pouco revisado;

Hilton James Kutscka apresenta um conto que teria fôlego para muito mais do que apresenta. Requiescat in Pace só não é tocante porque é curto demais para suas ambições. Pulando séculos de duas em duas páginas, variando famílias tipográficas para emular vozes distintas, tentando truques metalinguísticos para dar vida ao texto, a única coisa que o autor não consegue é manter um ritmo agradável e pertinente à história. Mas valeu a intenção, pois é perceptível que Kutscka tem talento e, principalmente, histórias para contar. Em tempo: o termo “replicante” já é oficialmente sinônimo de andróide? Porque, para mim, replicante ainda é aquele que replica a alguma assertiva;

Numa sociedade telepática é possível que se estabeleçam regras para uma utilização ética da leitura das mentes, mas será que até os criminosos condenados se ateriam a elas? O cenário de Vladja é pífio se comparado ao texto bem trabalhado (apesar de algumas construções que soam forçadas) de Ivan Hegenberg e o maravilhamento que seria de se esperar perde-se nos meandros do conto;

Ataíde Tartari é, talvez, um dos melhores de sua geração. Forma, conteúdo, humor, A Máquina do Saudosismo tem tudo. Só não tem tamanho, merecia mais páginas.

Carlos André Mores e seu Ponto Crítico são uma dupla mais que digna. O conto é ótimo em tudo e por tudo, na descrição das peripécias interdimensionis do protagonista, no desenvolvimento do ambiente, nas personalidades dos coadjuvantes. Boa história, com final poético;

E, para finalizar, Onde Está o Agente?, de Rinaldo de Fernandes, volta à temperatura morna de outras histórias do livro, com uma diferença: esta tem a pretensão de ser um exercício estilístico. Não fosse o completo desinteresse que seus personagens despertam, até poderia funcionar, mas não dá vontade de acompanharmos o narrador em sua corrida paranóide contra o tempo. Depois de tantas siglas e códigos salpicados pelo texto, o envolvimento fica irremediavelmente comprometido e aí não há cena de ação que salve a Pátria e sentimos vontade de fechar o livro na cara do herói, sincronizando com a porta ao final do conto.


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Outras resenhas de Futuro Presente, no JB, na CartaCapital e, de novo, no JB.

12 comentários:

Luiz Felipe Vasques disse...

"Outro ponto digno de nota é a desinformação científica, que faz com que um autor acredite que um asteróide do tamanho da ilha de Chipre, ao cair na Terra, cause a desintegração da Malásia e não o fim do planeta (pg. 79). Esse engano é apenas um dentre inúmeros e concordemos que em contos que se vendem como ficção científica, o desconhecimento da ciência leva ao fracasso inescapável."

Depois o Calife diz que o escritor brasileiro de FC Hard não pesquisa e nego fica sentido...

H. James Kutscka disse...

Caro Octávio: Obrigado por suas palavras gentís e sua critica amena.
Somente como explicação para a passagem rápida dos séculos . Tive de me ater aos sucessos mais importântes porque tinha limitação de "toques" por conto entre outras que não foram respeitadas por outros autores, como evitar sexo ou linguagem escatológica e conter uma mensagem ecológica.
Espero que tenha oportunidade de ler outros trabalhos meus que não obedecem a nenhuma regra pré- estabelecida como: Lail-Ah " O divórcio de Deus, Vidas "diversão Mortal ou Casa dos Mortos "contos do dia 33".
A proposito a palavra replicante ganhou vida no filme Blade Runner, não são robôs nem seres biônicos, sâo réplicas humanas, o mais proximo que a tecnologia futura conseguiu chegar do original. Abraços Hilton

Malprg disse...

Ótima resenha, Octa. Infelizmente, só confirma a minha impressão inicial do livro, que não me entusiasmou nem me animou a comprar. Pena, porque o elenco de autores é bom...

Octavio Aragão disse...

Oi, Felipe.
Não creio que os autores da FCB pesquisem pouco, muito pelo contrário.

Prazer em “conhecê-lo”, Hilton.
Realmente fiquei curioso em conhecer seus outros trabalhos. A crítica, acredite, não foi amena, foi o que achei justo, pois gostei muito de seu conto. Quanto a “replicante”, reconheço minha má vontade em assumi-la como parte do léxico. Gosto dela e acho que faz o maior sentido dentro do filme, onde os andróides efetivamente replicam ao Criador, e só.

Opa, Lúcio.
Ainda acho que a inciativa do Nelson é supervalida e que, apesar da minha opinião – que pode não bater com a sua –, devemos comprar o livro, sim. Aliás, adoraria ler uma resenha sua sobre esse livro.

Ivo disse...

Faço das palavras do Lúcio as minhas.

O Antônio Luiz já fez uma crítica severa, e a sua não vai muito longe disso.

Bem lembrado que o GRD já tinha tentado algo semelhante a 40 anos, e não deu muito certo; como dizem os historiadores "quem não se lembra do passado, está condenado a repeti-lo" (nesse caso pode ter sido desconhecimento).

Mas, ao contrário do Lúcio, eu já comprei esse livro; provavelmente vai para o "estoque", perdi a vontade de ler.

Octavio Aragão disse...

Oi, Ivo.

EU acho que temos de comprar, ler e discutir. Trata-se de uma antologia publicada por uma editara grande e que tem uma visibilidade ímpar. Temos de analisar para fazermos outros aproveitando os pontos positivos e acertando o que não funcionou.
Mas repito: todas as críticas são opiniões. E cada um tem a sua.

Luiz Felipe Vasques disse...

Octa, eu até acredito que haja...

Fábio M. Barreto disse...

Concordo, Octavio. A discussão é fundamental tanto para evitar os "erros do passado" quanto para facilitar o entendimento dos caminhos mais efetivos. Todo escritor quer acertar a mão, e não há brilhatismo sem aceitação de público ou crítica.

Tio Ivo: não guarde, não. Leia e comente também.

Pena nao ter acesso por aqui. Ando lendo muitos clássicos e tirando o atraso das referências. Hyperion, por exemplo, está empacado aqui. Estou termindand Alice in Wonderland e retomarei com FC logo logo.

Abraço aos amigos,
Fábio Barreto

Anônimo disse...

Bela resenha. E ao contrário dos demais, me deu vontade de ler pra saber se é mesmo tão ruim essa coletânea.

Octavio Aragão disse...

Pois é, Fábio e Tibor.
A função de uma boa resenha é despertar o interesse dos leitores. Repetindo: cada resenha crítica é apenas uma opinião e, mesmo negativa (ou parcialmente, como é o caso desta), acaba se tornando mais uma faceta da obra em si.

Vou postar os links para as outras resenhas do livro. Takvez isso ajude a multifacetar as interpretações.

Gerson Lodi-Ribeiro disse...

Resenha bem-feita, Octavio.

Bastante coincidente com a do Antônio Luiz Costa, apesar de vocês dois terem apontado equívocos e virtudes distintos.

Abraços,
Gerson.

Unknown disse...

Oi, Gérson.

Bem-vindo ao blog. Pois é. Eu e o Antônio chegamos a conclusões semelhantes, mas por caminhos diferentes.