Se conhece um pouco de história da arte, imagine um tríptico de Hyronimus Bosch. Um mundo onde cidades existem à sombra de esqueletos, coleópteros concebem esculturas de secreções coloridas e o prefeito pode, em momentos de crise, solicitar uma entrevista com o Inferno. Esse é o universo de New Crobuzon, uma urbe-estado com todos os (des)confortos da contemporaneidade e mais, muito mais.
O autor dessa colcha de retalhos pós tudo é China Miéville (1972- …), um dos representantes britânicos do novíssimo subgênero batizado com o título New Weird.
O interessante, porém, no romance de Miéville, não é o quanto de surreal existe no cenário, mas como podemos nos identificar com os personagens apesar da overdose de ácido impressa nas páginas. Todos críveis, polidimensionais, mesmo que sejam xenianos – humanóides parcialmente insetos, vegetais ou pássaros -, cyborgues escravos da moda ou IAs zumbis que perambulam pelos depósitos de lixo.
Ao contrário da FC literária que nos acostumamos a ver por aí, não importam as origens dessas criaturas que habitam as páginas de Perdido Street Station, mas os dilemas, sonhos e frustrações de artistas, traficantes e inventores. E, claro, há uma busca para nortear a história.
História não, saga.
A trajetória do pesquisador Isaac Dan der Grimnebulin em busca das asas perfeitas, com as quais pretende fazer um homem-pássaro mutilado alçar vôo, é prometéica. Como o titã grego ele rouba – inadvertidamente, é verdade, mas com resultados desastrosos — uma terrível maravilha guardada a sete chaves pelo governo, que coloca em risco toda uma estrutura social parcamente equilibrada e até, de forma indireta, a vida da mulher (ou algo parecido) que ama.
Isaac acaba acorrentado a um destino trágico: é obrigado a reparar seu erro e viver na própria carne os dilemas dos meio-humanos. Enquanto empreende uma caçada desesperançada em busca de uma arma definitiva que elimine de vez a ameaça que foi liberada por suas próprias mãos, se vê como juiz e carrasco numa chacina onde a diferença entre puros e ímpios é desimportante.
Trata-se, enfim, da história do homem para quem a vontade de corrigir erros se confunde com a erosão do caráter. Também é a história da artista presa pela integridade de seu trabalho. Uma fábula sobre a ilusão da honra e o dom de voar. E ainda é um conto sobre a morte de uma comunidade puída pelo crime e vício, imersa numa noite sem sonhos.
Pensando bem, Perdido Street Station não é um tríptico de Bosch.
É a esquina da nossa rua.
Publicado originalmente na revista MANDALA #2 – por Octavio Aragão – jul2004
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