sexta-feira, 5 de agosto de 2011

A um Pássaro do Paraíso

por Octavio Aragão (Coluna originalmente publicada no jornal AcheiUSA)

A tautologia é um desmaiar propício, uma afasia salutar, uma morte, ou, se prefere, uma comédia, a “representação” indignada dos direitos do real contra a linguagem. Mágica, ela só pode, evidentemente, proteger-se por trás de um argumento de autoridade, tal como os pais que, não sabendo mais o que dizer, respondem à criança que insiste em explicações: “é assim porque é assim”.
Roland Barthes

O fiel sempre quer consumir o seu Deus.
Edgar Morin 

Greta Garbo, na caricatura de Nino Za

    O tempo das celebridades inquestionáveis, acima do bem o do mal, acabou. Depois do advento das redes sociais, a torre de marfim que abrigava as divindades neo-olímpicas foi demolida e junto com ela a impunidade que orbitava as opiniões dos famosos. Hoje, se um erro gramatical é eventualmente perdoado (mas sempre ridicularizado), palpites politicamente incorretos e aforismos mal construídos podem custar caro.

    O filósofo Edgar Morin postulava que fotografias e autógrafos seriam fetiches-chave que materializam os fetiches-mexerico, a vontade dos admiradores de entrar de uma maneira mais direta na intimidade dos ídolos. Pois hoje, com a facilitação das imagens e das comunicações interpessoais, o fetiche evoluiu para uma obsessão que muitas vezes cria um paradoxo ao mundanizar a divindade antes inacessível. É nessa dualidade que se equilibra o público, entre a idolatria incondicional ao ídolo marmóreo emoldurado no tubo de raios catódicos e o desprezo pelo ser humano hiper-exposto - e por consequência, frágil, às portas do ridículo - que propaga impropérios muitas vezes imperdoáveis. Cada grosseria, cada indelicadeza ou deslize são colecionados com a mesma ânsia que os méritos e as frases de efeito são etiquetadas para futura referência.

    Os objetos de desejo, por sua vez, beiram a esquizofrenia ao alternar vontades de brilho com rompantes que clamam por privacidade, paródias de Greta Garbo numa sociedade cada vez mais ávida por filmes piratas e fotos picantes. Durante os debates que anteciparam a eleição de Dilma Rousseff, uma celebridade declarou-se no Twitter avessa à ridicularização da imagem dos candidatos. Do alto de minha ingenuidade pergunto como sobreviveriam os caricaturistas caso se promulgasse uma lei anti ridicularização da imagem, já que a função de um caricaturista é representar a torpeza do caráter humano pelo exagero da expressão facial. O grotesco, desde os tempos de Rabelais, é uma ferramenta de crítica social e política e optar por uma censura à ridicularização parece um flerte perigoso com ideais de manipulação da imagem que campeiam em regimes totalitários.

    É compreensível que as celebridades não estejam preparadas para esse choque de realidade. Durante décadas suas opiniões divulgadas pela mídia beneficiaram-se com a distância, uma inacessibilidade que lhes emprestava segurança. Agora a possibilidade de ser questionado ou mesmo discordado pode parecer mais desconfortável que uma cama de pregos. Bem faz o escritor Paulo Coelho que, a cada vez que é enxovalhado por conta de seus livros, responde tranquilo algo parecido com “não gostou? Não faz mal, volte no mês que vem. Tenho certeza que vai adorar o próximo”. Coelho é um artista adaptado aos novos tempos e às novas mídias.

    Twitter, Facebook, Orkut, LinkedIn etc são os novos oráculos de mão dupla, que não apenas baixam a palavra dos deuses, como elevam a dos homens, colocando-os quase em pé de igualdade. O passarinho símbolo do Twitter alça voo e assume o papel da ave mitológica cuja pena feriu o olho imortal de Heimdall, o porteiro de Asgard, antecipando a queda dos deuses nórdicos, mas também produzindo a ascensão de almas ao panteão graças a determinados números que, no novo código binário da fama, traduzem popularidade. Afinal, ter mil seguidores já não é mais privilégio de profetas ou pastores bem sucedidos, basta você ter um blog bem visitado ou uma conta no Twitter, coisas que custam pouco e podem dar um retorno considerável em divulgação. É o paraíso da divindade democratizada, mas que pode, exatamente por sua facilidade em ascender, tornar-se efêmera. Quem lembra das celebridades da década passada levante a mão. Ou seja, o processo de reinvenção de cada um deve ser potencializado a cada ano, sob pena de perder-se o primeiro degrau no pódio  da fama pós-tudo.

    Os deuses teutônicos perderam o bonde e sua única saída pode ser a superexposição, ombreando diariamente com a horda bárbara que ameaça os muros da capital divina, seja ela qual for. Ou talvez não. Quem sabe os novos eremitas, gente imbuída do espírito do escritor Thomas Pynchon, que jamais permitiu a publicação de qualquer fotografia sua, possa reescrever o livro das Revelações.

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