quarta-feira, 14 de novembro de 2012

A ira do Deus da Colheita - uma cena perdida de Rainha das Estrelas

  A origem de Mamba Mauzh, segundo Osmarco Valladão, reside nas páginas de Moby Dick. O visual tatuado, a constituição física de um gigante. A religião totêmica. Ele é uma resposta ao Queequeg, o selvagem arpoador de dentes serrados do romance de Herman Melville. À essa imagem poderosa, coube a mim construir um passado digno e decidi que, em primeiro lugar, Mamba deveria ser um título e não apenas um nome. 

  Imaginei que nada mais brasileiro que a capacidade de batucar um sambinha em qualquer superfície, em qualquer situação. Se Veracroce é o Planeta Brasil e Ryoh, o Rio de Janeiro, Mamba Mauzh deveria ser originário de algum estado como Bahia ou Alagoas, mas preferi deixar indefinida sua origem, destacando a malemolência, a qualidade de ser um bamba do ritmo, a alma da festa. Samba, bamba... mamba.

   Estava definido o motivo do nome. Restava posicioná-lo no cenário de Rainha das Estrelas. Eu sabia que ele era considerado um mago da mecânica, mas precisava definir como teria chegado a esse ponto de genialidade. Pensei que o melhor seria juntá-lo a Argo, o comandante dos piratas, o mais rápido possível (curiosamente, em sua versão de Star Trek, J. J. Abrams mostrou algo parecido entre o jovem capitão James Tiberius Kirk e o engenheiro Montgomery Scott) e fazer com eles uma dupla de ação que antecederia a tripulação da Rainha das Estrelas. 

  Fiz do futuro engenheiro um pária, joguei-o na rua, nas oficinas, cumprindo à risca a regra de Stephen King: se quer construir um bom personagem, faça-o sofrer. Mamba Mauzh virou meu David Copperfield, mas sem a choradeira. 

  Se vivesse na Inglaterra vitoriana do romance de Dickens, provavelmente Mauzh passaria a perna no vilão Uriah Heep e, sorrindo, fugiria com o dinheiro roubado.

Abaixo, uma cena da versão de Moby Dick (1998), onde se apresenta Queequeg, a grande influência visual para Mamba Mauzh.



***

    O nome não era Mamba e a história do apelido é digna de ser repetida. O último de uma ninhada de quize, Mamba Mauzh sempre foi diferente dos irmãos, voltado ao poder das coisas, ao porquê do mundo. Essa atitude, numa família de quequiés, afeitos ao culto à natureza, à imutabilidade de tradições e às tatuagens tribais, foi motivo de represálias.

    Dizem que os quequiés nasceram de uma resposta ao consumo exacerbado que destruiu boa parte do mundo pré-diáspora. Seus fundadores teriam decidido nunca tirar do ambiente mais do que necessitassem, nunca questionar as decisões do acaso, viver com o que o destino os provisse. Para o pequeno Maury isso nunca foi uma atitude inteligente e, em consequência, apanhou durante toda a infância, não dos pais, mas de todo o resto. Foram anos dedicados ao aprendizado do funcionamento das máquinas proibidas, que roubava dos visitantes, dos turistas, dos atravessadores que negociavam com os pais e outros agricultores da faixa verde que separava as Áreas Amarela e Vermelha.

    Um dia, a oportunidade perfeita apareceu na forma de um multidebulhador trazido por representantes da Coroa, que tentavam convencer os quequiés a potencializar a produção. Não fosse pela intervenção do pai de Maury, os engenheiros agrícolas da Coroa teriam sido mortos e oferecidos ao deus da colheita com cara de tubérculo ali mesmo. Enquanto seu pai dialogava com a turba, tentando salvar a vida dos Primevos e evitar um massacre posterior da parte dos dentes vermelhos, Maury convenceu dois dos irmãos mais novos a ajudá-lo a roubar o motor do multidebulhador.

    Maury passou duas semanas mergulhado nos segredos da peça mecânica até que um dos meninos abriu a boca a respeito da aventura ocorrida no dia do quase linchamento.

    – Você desonrou a Marca da Hombridade que traz em seu rosto desde o nascimento – proferiu o Pai de Maury – Fui eu que marquei sua pele quando completou três meses e o fato de você a macular também me torna indigno.

    Foi o suficiente para Maury ser expulso de casa, mas antes teve de conversar com os irmãos e convencê-los a ficar com uma mentira apaziguadora. Depois, já com a bagagem arrumada, sentiu remorso. De uma maneira ou de outra, acabava manipulando as pessoas que amava. A mãe permaneceu em silêncio enquanto desaparecia sob o umbral da porta. Nunca mais a viu.

    Na estrada, tomou o caminho do pequeno aeroporto, triste, mas cheio de ideias envolvendo motores, combustíveis, baterias e velocidades absurdas. A falta de um registro oficial impediu que assumisse um cargo como aprendiz no aeroporto. O chefe da equipe de reparos, sujeito gordo e falastrão, mas com bom olho para talentos, convidou-o a integrar a equipe de sua oficina particular, que atendia aos aerocarros e autogiros dos Primevos da região.    

    Foram bons dez anos com Francis Rotta, que além de mecânica, ensinou tudo que sabia a respeito de música e fez de Maury um Mamba, alguém capaz de dominar qualquer tipo de ritmo.

    – És um talento, rapaz – disse uma vez, numa noite de bebedeira. Maury tocava um conjunto de percussão polirrítmica e era a alma da festa. A comemoração acabou ao amanhecer e Maury dormiu junto ao instrumento.

    Quando acordou, a vida tinha mudado outra vez.

    – Levanta, cara – disse o homem que Maury viria a conhecer como Anton Argo, ajoelhado ao lado de sua cabeça que ainda zunia por efeito dos tambores – Alguém armou para você.

    Ao redor deles, todos os participantes da festa jaziam mortos, como se o deus vingativo de seus pais tivesse resolvido fazer uma colheita.

4 comentários:

Marcos Archanjo disse...

Octavio, a sua capacidade de síntese para gerar uma cena, seu pretérito e futuro possível está supimpa! Mais uma reclamada da minha lavra sobre como isso pode ser retirado do texto impresso. Dá cor, aroma e paladar à narrativa e ainda bem que temos a internet para compensar essas perdas e abrir novas possibilidades. Parabéns mais uma vez e aguardo o próximo drop aventuresco. Um beijo do Anjo! Archanjo 0:)

Octavio Aragão disse...

Oi, Marcos! Na semana que vem tem a continuação da origem de Mamba Mauzh. Essa é uma das minhas partes preferidas de Rainha das Estrelas e fiquei trsite dela ter de sair, mas tudo se ajeita. A internet está no nosso planerta para isso mesmo.

Leonardo Peixoto disse...

Você tem uma incrível capacidade para desenvolver cenários e personagens ! Queria ter também essa qualidade ... e principalmente disposição para isso .

Octavio Aragão disse...

Disposição é o inverso de preguiça, Leonardo. Abra um arquivo no Word e comece a digitar que a história sai.