segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Leituras e releituras de 2015, parte 2

    Alguns dos livros deste ano foram influências diretas de outros. Por exemplo, foi a releitura de Promethea que me fez procurar a obra de Aleister Crowley e foi a proximidade com os livros de Farmer que deram as pistas para as biografias ficcionais escritas por Baring-Gould e Anne Hart. Assim, os livros de 2015 formaram uma teia de relações, algumas óbvias, outras nem tanto, conforme se verá a seguir. Ah, a primeira parte das resenhas está aqui.
    Há muito tempo queria ler a biografia ficcional Nero Wolfe of West Thirty-Fifth Street, de William S. Baring-Gould, primeiro porque esse autor escreveu a obra que influenciou Tarzan Alive, de Philip José Farmer, o já clássico Sherlock Holmes of Baker Street, 221B, segundo porque gosto de Rex Stout, apesar de ter lido poucas de suas aventuras com Nero Wolfe e Archie Goodwin. Baring-Gould segue a linha de seu livro anterior e transforma Wolfe em uma pessoa de verdade, criando uma "realidade" onde o detetive obeso, seus coadjuvantes e clientes efetivamente existiram. Infelizmente, dessa vez a coisa não funcionou tão bem, o tal do "maravilhamento" não cola, talvez porque, diferente de Sherlock Holmes (e Hercule Poirot, como veremos depois), Wolfe não seja um personagem tão historicamente impactado na cultura pop. Ou talvez o autor não estivesse tão inspirado, vai saber. Certas coisas simplesmente não funcionam duas vezes.  
    Falando em Farmer, Ironcastle foi, até onde sei, a primeira e única tradução que cometeu (na verdade, Farmer altera tanto o estilo do original, que seria melhor considerarmos como uma adaptação). O romance é um típico pastiche de As Minas do Rei Salomão, obra-prima de Haggard que influenciou gerações, escrito pelo francês J. H. Rosny, e que caiu no gosto de Farmer quando menino. Temos uma expedição à selva, temos uma equipe de aventureiros que conta com os especialistas em armas e ciências e, claro, a mocinha indefesa que está ali apenas para ser sequestrada pelos selvagens e resgatada pelos machos de plantão. Farmer dá um jeito de enfiar citações a elementos e personagens de outros autores logo no início - temos o Gun Club, de Julio Verne, e o Professor Challenger, de Connan Doyle - mas isso não passa de uma curiosidade que não ajuda em nada a história. Entendo o fascínio que esse romance causou ao jovem Farmer, mas - honestamente - há coisas melhores na vida para perdermos tempo com ele. Vamos adiante.
    Depois de quase vinte anos, graças às republicações da Marvel, consegui terminar de ler Miracleman, de Alan Moore - creditado como "The Original Writer" - e uma pletora de artistas de peso, como Alan Davis, John Totleben e o genial Garry Leach. Essa é a história seminal de toda a revolução dos superheróis que floresceu durante os anos 80 e atingiu o ápice nas mãos de Frank Miller, Neil Gaiman e do próprio Moore, em obras como The Dark Knight Returns, Sandman e Watchmen. Sem Miracleman, nada disso teria existido. Ali estão a visão nietzscheana de uma utopia sob a guarda de um superser divino,  as carnificinas gráficas que chegaram a influenciar o cinema (os filmes The Avengers e Man of Steel, com seus banhos de sangue cinético nas telas, são herdeiros diretos da forma, mas não do conteúdo da obra), a poesia em quadros que remete ao quadrinho underground abrindo caminho pelas HQ comerciais. Imperdível e necessário.
Eis que, ao reler Promethea, senti a necessidade de finalmente encarar a obra de Aleister Crowley. Decidi começar pela compilação de suas poesias, artigos e textos publicados logo no começo de sua carreira como mago, reunidos em The Works of Aleister Crowley. Para minha surpresa, Crowley é um bom poeta. Nada absolutamente genial, mas há ali uma força, um ideário, um solo fértil que antecipa tudo que virá. Excelente prelúdio para conhecer a obra dessa figura influente em diversos níveis da cultura ocidental.

Quando soube que a Altus Press lançaria uma nova série literária de Doc Savage, não pude deixar de conferir. Além de serem edições lindas, percebi um cuidado nos textos, que remetem aos originais em estilo, e ao menos um elemento digno de muita atenção: a finalização do crossover entre Doc e The Shadow, que havia sido escrita por Lester Dent, criador de Doc, e recusada por Walter Gibson, pai do Shadow, sabe-se lá por que motivos. Will Murray, o escritor dessas novas aventuras, se apropriou do texto de Dent e finalizou com galhardia essa aventura perdida, não por acaso chamada The Sinister Shadow. Um belo exercício em pulp fiction, perfeito para novatos e um deleite para os iniciados.

Diferente do livro sobre Nero Wolfe, The Life and Times of Hercule Poirot é um deleite. Anne Hart rearranja os contos e os romances de Agatha Christie para montar o quebra-cabeças do passado do detetive belga e o resultado é tão fascinante quanto os melhores mistérios da Dama do Crime. As pistas estão espalhadas por todos os cantos, e Hart vai atrás delas, descartando as que parecem inconclusivas, construindo a melhor biografia ficcional que já li (sim, melhor que a de Sherlock Holmes, por Baring-Gould, e que as de Tarzã e Doc Savage, por Farmer). Lançando mão de elementos biográficos da própria Agatha Christie para tampar os eventuais buracos, o resultado é um belo estudo sobre a Inglaterra no início do século 20, um império em declínio, com seus imigrantes, seus conflitos de classes e preconceitos.

Quando Sin City foi publicado pela primeira vez, nos anos 90, não me deixei encantar. O texto não me empolgava e as histórias não me pareciam tão revolucionárias para qualquer um que tivesse lido Hammett, Chandler e seus discípulos. Porém, quando dei com o livraço Big Damn Sin City, compilação de todo o material produzido por Frank Miller em duas décadas, não pude deixar de me render a esse trabalho insano, transbordante de paixão pelo objeto de culto. Porque sim, Sin City é um trabalho de fã. Um belo trabalho.

Criação, de Gore Vidal, é um romance histórico de peso, que deixa no chinelo qualquer tentativa de Bernard Cornwell de uma recriação consistente e convincente do passado (tá, Cornwell é bom, mas acreditem, não chega aos pés de Vidal), principalmente ao nos contar a história pela perspectiva persa do conflito relatado por Heródoto - cuja História acabou entrando na minha fila de leitura para 2016. Querendo ou não, somos gregos em tudo e por tudo, e ver o outro lado da questão parece tão antinatural quanto aprender a comer com hashi. Porém, uma vez deixados de lado os preconceitos, o que se desenrola é uma acurada e apaixonante viagem pela história clássica, que vai de Atenas à Babilônia, do Ganges à China, e de lá a Passárgada, onde o protagonista era o melhor amigo do Rei. Material para teses, o romance de Vidal cria um personagem icônico, Ciro Espítama, neto de Zoroastro e herdeiro de sua santidade, o suficiente para que o levemos na memória pelo resto da vida. 

Conhecia o universo de Clive Barker pelo cinema, com a versão em filme de Hellraiser, singelamente batizado no Brasil como Renascido do Inferno, ainda nos anos 80. Foi uma experiência ímpar assistir a essa pequena obra-prima do horror em uma sala sem ar condicionado em pleno verão. Acreditem, combinava. Depois procurei a obra literária desse ás do horror contemporâneo e aprendi um ou dois truques com suas coletâneas Livros de Sangue. Agora, trinta anos depois, finalmente consegui ler a novela que deu origem ao filme e, caramba, o impacto ainda está lá. O livrinho funciona e acrescenta camadas interpretativas ao discorrer com mais detalhes sobre a vida do vilão Frank. Deu vontade de ler mais e mais livros do autor e talvez embarcar em uma ficção mais longa.

Uma Terra alternativa onde aqueles que seriam as populações indoamericanas em nosso mundo invadiram parte da Europa, vindas da Ásia, ainda na idade da pedra, mas que não conta com um continente americano. É nessa realidade paralela que cai o piloto Roger Two Hawks, ele mesmo um indoamericano, bem no meio de uma guerra que parece paralela àquela que grassa em nossa Terra, nos anos 40. Essa é a premissa de Two Hawks From Earth, de Philip José Farmer. Como a tecnologia de nossa realidade é muito superior à vigente no novo mundo, Roger logo se torna objeto de desejo de diversas nações, cada um delas com papéis bem claros no conflito. Tentando entender qual seria o mais "justo" ou "certo", Roger salta de um lado para outro, fugindo com companheiros eventuais e usando seus conhecimentos de engenharia e aeronáutica com moeda, até que descobre que não é o único perdido por ali. Um piloto alemão também aterrissou em terras pertencentes a um governo despótico, provavelmente descendente dos hunos, e prontamente se estabeleceu como fornecedor de tecnologia e conhecimento. Um dos grandes romances de Farmer, com personagens críveis, um cenário impressionantemente bem construído para as poucas páginas do livro, uma trama envolvente e uma aura cínica e anti-belicista que dá vontade de aplaudir. 

Tom Jones, de Henry Fielding, é um clássico pouco creditado no Brasil. A trama em si é simples, narra as desventuras do jovem bastardo que dá nome ao romance, suas conquistas levianas, suas crises de consciência, disputas, duelos e como tudo isso impacta a cidadezinha que habita no interior da Inglaterra do século XVIII. A prosa de Fielding é fluída, apesar da forma, e os malabarismos estilísticos que se permite são uma atração à parte. Por exemplo, uma briga no cemitério, protagonizada por matronas solteironas, burgueses afoitos e camponeses altivos, é relatada no melhor estilo homérico, como se as guardachuvadas na cabeça fossem comparáveis às espadeiradas dos heróis da Ilíada. O efeito é hilário e me peguei rindo sozinho em diversos momentos durante a leitura. Para quem tiver paciência para apreciar o estilo, trata-se de uma aula de estrutura literária e um dos grandes exemplos de literatura com teor irônico, lado a lado a autores como Jonathan Swift e Charles Dickens.

E, finalmente, Encruzilhada e E de Extermínio, de Lúcio Manfredi e Cirilo S. Lemos, respectivamente. Estilos diferentes - um é o ápice do ensimesmamento delirante-paranóico de Manfredi, claramente depositário de Philip K. Dick, onde nunca se sabe se o que está acontecendo é real ou fruto da imaginação do protagonista, um assassino de aluguel desiludido com a carreira; outro é cáustico, quase seco, que constrói seu herói, um assassino de aluguel desiludido com a carreira que tem visões premonitórias de uma santa, com uma força e postura de quem pode ter dúvidas a respeito do que virá, mas não do que sabe fazer. Cenários diferentes - um se passa no Rio de Janeiro de agora, uma cidade cheia de bandidos, onde não se pode confiar em ninguém; o outro se passa no Rio de Janeiro steampunk, uma cidade cheia de espiões, onde não se pode confiar em ninguém. Motivações diferentes - um é uma busca intuitiva pelo real; o outro é uma fuga desesperada de uma realidade que parece pouco confiável. É quase como se os dois livros se complementassem e ler a ambos ao mesmo tempo é uma experiência. Recomendo.

2 comentários:

Leonardo Peixoto disse...

Uma bela seleção de leituras , que a de 2016 seja ainda melhor ! Falando em ler , você sabe porque não são mais publicadas histórias no Hyperfan ?

Octavio Aragão disse...

Ola, Leonardo.
As leituras este ano estão andando. Comecei o ótimo Aurora, de Kim Stanley Robinson, e estou com Diante da Imagem, de Georges Didi-Huberman, na minha frente. Se continuar assim, logo alcanço a meta de 50 no ano.
Quanto ao Hyperfan, acho que o pessoal deu uma aposentada geral. Posso falar por mim, que deixei a série Capitão América - Origens pela metade.