por Octavio Aragão
Publicado originalmente no jornal Achei USA, em 20/02/2010
Há dez anos, um então promissor cartunista e provisório companheiro de mesas de bar teimou comigo sobre um detalhe de Os Trabalhadores do Mar, romance de Victor Hugo. Discutíamos sobre as características popularescas de autores considerados sérios e respeitados e lembrei de uma cena em que o protagonista, um pescador de poucas palavras chamado Gilliatt, enfrentava um polvo gigante no melhor estilo Tarzã, com uma faquinha e mais nada. O chargista exibiu um sorrisinho de troça e mandou “você está enganado. Victor Hugo jamais escreveu uma bobagem assim”.
O sujeito falou com tal segurança, que, mesmo tendo certeza do que dizia, duvidei de minha memória. Mas insisti “como assim? Gilliatt mete o braço num buraco perseguindo um caranguejo e é atacado pelos tentáculos que quase o sufocam. Pega a faca e, depois de dois capítulos, consegue matar o bicho”. Pois nem minha descrição do confronto demoveu meu adversário, que, àquela altura, já havia conseguido me transformar em alvo de pilhéria do resto da mesa. Dois amigos faziam “sons de polvo” (uma onomatopéia parecida com “purrr, purrr”), balançando guardanapos molhados na frente do meu nariz, o que, convenhamos, não colaborou para meu bom humor. “Veja bem,” continuava o sujeito “Victor Hugo era um escritor realista, nunca se deixaria levar por cenas estapafúrdias como essa”. Mais gargalhadas e, lá pelas tantas, comentei que a batalha contra o octópode tinha me exaurido. Para minha surpresa, o adversário acrescenta: “ah, o octópode? Ah, sim, tinha um octópode lá”.
Nem preciso dizer o que aconteceu em seguida. Uma pequena revolução tomou conta da mesa do bar, com gente revoltada dizendo que polvo e octópode eram estritamente a mesma coisa, enquanto o recalcitrante repetia obstinado que “não! Polvo é uma coisa e octópode é outra completamente diferente”. A briga durou metade da noite e há pouco tempo ainda era motivo de piadas entre os que vivenciaram o episódio. Mas o ponto relevante e revelador desse caso não reside em diferenças zoológicas ou se Victor Hugo usou ou não a palavra “polvo” em Os Trabalhadores do Mar (usou sim, duas vezes. Ele preferia o termo pieuvre, mas usou polvo e cefalópode também. Octópode aparece uma vez), mas no motivo da repulsa à idéia de um elemento pretensamente fantástico inserido no texto de um autor realista, porque, afinal de contas, o realismo é muito mais sério, importante e digno.
Essa premissa é muito comum em diversas mídias. A maioria das telenovelas, por exemplo, carrega com orgulho a bandeira do realismo, muitas vezes fingindo que fantasmas, premonições e telepatia são eventos corriqueiros de nosso dia a dia. Viver a Vida, de Manoel Carlos, que ainda não apresentou nenhuma alma de outro mundo como outras obras do autor, já teve sua cota de eventos sobrenaturais ao mostrar a mãe “sentindo” o acidente sofrido pela filha no momento em que ocorria em outro continente. No entanto, ninguém ousa dizer que não se trata de um folhetim “realista”.
O bordão “baseado em fatos reais” funciona como um chamariz para várias produções cinematográficas, mas um exemplo recente mostra que, às vezes, o que nos parece mais real é exatamente o oposto. Operação Valquíria, filme de Bryan Singer, conta a história (verídica) de um oficial nazista que chefiou um atentado contra Hitler. Bastardos Inglórios, filme de Quentin Tarantino, conta a história (falsa) de um oficial judeu-americano que chefiou um atentado contra Hitler. Os filmes têm diversos pontos em comum: dois astros de primeiro escalão de Hollywood (Tom Cruise e Brad Pitt) encabeçando um elenco de talentosos coadjuvantes semi-obscuros, cenas de suspense e montagem vertiginosa. Porém, para mim, um é satisfatório e o outro não. No momento em que distorce a história a seu bel prazer (e não vou contar como isso acontece, já que você, leitor, pode não ter assistido) o filme de Tarantino torna-se imprevisível, imponderável, desarmando a audiência da mesma maneira que o polvo de Victor Hugo, enquanto o filme de Singer perde o foco ao se manter aparentemente fiel ao senso comum de como as coiosas aconteceram e acaba ajudando a canonizar um novo tipo de mutante improvável: o bom nazista.
O realismo em Bastardos Inglórios é uma desculpa, uma pista falsa que desvia a atenção da audiência e faz com que o desfecho tenha um efeito amplificado, mas Tarantino não inventou a arte da manipulação das expectativas do público. Gustave Flaubert, no clímax de Madame Bovary, transforma um romance de costumes picante num monumento gore, envenenando a personagem e descrevendo sua agonia e morte com uma frieza capaz de virar o estômago de leitores mais sensíveis, como numa ilustração hiper realista ou num infográfico científico, mostrando entranhas e detalhes que, apesar de existentes, seriam imperceptíveis a olho nu. Outro é Herman Melville, que relata o dia a dia de um baleeiro no século XIX com a mesma fleugma metódica com que cavalga a metafórica Moby Dick, cuja presença pontual contrasta com o cenário naturalista emprestando-lhe um tempero surreal.
Assim como os fantasmas e premonições de Manoel Carlos e a arrogância verborrágica de Tarantino, que distorce fatos e fotos, o fantástico, o paranormal e o maravilhoso em Victor Hugo, Flaubert e Melville vêm à tona aliados ao factível, ao prosaico e ao mensurável, lançando tentáculos sobre o leitor e assombrando-o pelo resto da vida.
Um comentário:
Encontrei no YouTube episódios da primeira série animada de Transformers , espero que goste , https://www.youtube.com/channel/UCd3xDRRftfqKKEmyYqnhpzQ/videos .
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