sábado, 28 de dezembro de 2013

A voz do dano

Na última semana, graças ao programa The Voice, um tipo de show de calouros apresentado pela Rede Globo,  muito se falou sobre, basicamente, o que é cantar bem. Percebo duas linhas de comentários, uma guiada pelo senso comum, que abraça donos de vozeirões que atingem notas altíssimas e distribuem vibratos, e outros que, apesar de eventuais deficiências e limites, constróem (ou não) um estilo de interpretação que se apropria dos elementos periféricos, como microfones, amplificadores e até moduladores, tanto para corrigir, quanto para criar uma assinatura vocal.
Os torcedores dos vozeirões, grupo ao qual pertencem muitos dos sertanejos, gospel e quase todos os cantores da Era do Rádio, não criticam os, digamos assim, estilistas, mas os fãs de intérpretes como João Gilberto, Nara Leão e até Roberto Carlos (vejam só!), descem a proverbial ripa naqueles que consideram como bregas. Quem tem razão? Talvez todos. Ou ninguém.

Pelo que percebo há anos, os candidatos a celebridades que se apresentam no The Voice, no Ídolos ou mesmo no Programa Raul Gil são, em grande maioria, profissionais da noite, com carreira em boites e demais casas noturnas. Li em algum artigo, cuja procedência não recordo, ser compreensível que eles soltem a voz nas estradas, cantando forte e bem alto, porque consideram que tem uma chance de mostrar serviço, chamar atenção. Isso, claro, acaba fazendo com que soem em grande parte muito parecidos, pois sobra pouco espaço para a interpretação da música escolhida. Ou seja, para o que se propõem, naquele momento específico e inicial de classificação, essa parece a estratégia adequada. O problema é que a estratégia se mantém durante toda a competição e o erro se evidencia durante a fase dos duelos, quando, muitas vezes, o que deveria ser um espaço para exploração de novos territórios estilísticos, acaba se tornando uma corrida tronitruante de vozes muito parecidas. Por isso, canções diferentes em forma e intenção soam rigorosamente iguais.

É sempre bom destacar que há exceções. Minha preferida é Dani Moraes, que competiu tanto em Ídolos, quanto em The Voice. Essa interpretação de Me Chama é, na minha opinião, matadora.



Outro ponto interessante a se levar em consideração é que, por exemplo, cantores de ópera atingem tons altos, com técnica e, principalmente, interpretação. Eles compreendem que toda canção conta uma história, com personagens, cenários e conflitos. O caso é que as canções populares também. O “narrador” de Óculos, dos Paralamas do Sucesso, não parece ser o mesmo que canta Conceição, imortalizada por Cauby Peixoto. Ou até poderia ser, mas exigiria uma adequação estilística da parte do – atenção – intérprete (fiz um exercício de imaginação agora e pensei em Herbert Vianna – dono de uma voz pequena – cantando Conceição, com uma pegada reaggae. Olha, creio que ficaria ótimo, da mesma maneira que o estilo de Cauby funcionaria para uma releitura de Será, da Legião Urbana).

A técnica e a verve não são deméritos. Um cantor técnico pode, caso queira, interpretar diferentes papéis, modulando o timbre, o tom, o alcance. Gal Costa, uma cantora de capacidade ímpar, consegue encarnar um punch a lá Janis Joplin e, em outros momentos, incorpora a docilidade da Bossa Nova. Se quisesse, Ivete Sangalo faria o mesmo, mas a maioria dos cantores que poderia se arriscar em áreas diferentes prefere repousar em suas respectivas zonas de conforto.

Indo na contra-mão dos críticos, não é porque gostamos do estilo, das composições e da presença de palco de determinado artista que ele, necessariamente, canta bem. “Cantar bem” significa, utilizando a mais famosa frase da Bauhaus, adequar forma e função (sim, não consigo deixar o design de fora por muito tempo). Um exemplo? Todos adoramos Milton Nascimento, certo? Grandes composições, talento inigualável, musicalidade ímpar. No passado, ele e Beto Guedes gravaram Norwegian Wood, dos Beatles, dando uma roupagem adequada a seus estilos, usando e abusando de falsetes. Foi um passo arriscado, mas ok, funcionou e muito bem. Nunca vi, porém, essa música interpretada ao vivo (abaixo o original e a gravação de Milton).




No entanto, quando Milton foi convidado a cantar Love of My Life, do Queen, o resultado foi um pouco diferente.





Talvez, se tivesse desenvolvido um arranjo mais adequado a seu estilo de interpretação, como fez com a canção dos Beatles, quem sabe o resultado não seria melhor? Mas, ainda assim, considero que Milton foi mais apropriado que a dupla Elton John e Axl Rose, que tiveram que se desdobrar para interpretar Bohemian Rapsody.




Sou capaz de apostar uma grana que Cauby, tão detonado nesse artigo, teria se saído melhor, sem causar danos à memória de Freddie Mercury. Afinal, ele já cantou rock (e junto com Roberto Carlos, quem diria!).



Em tempo: sabem quem foi a grande inspiração de Elis Regina, a cantora mais perfeita do Brasil? A breguíssima, e dona de uma voz poderosa, Angela Maria.

4 comentários:

Anônimo disse...

Oc,

ótimas palavras meu velho. só o exercício de imaginar as canções nas vozes que você imaginou já valeria a pena.

Abraços.

Gustavo

Octavio Aragão disse...

Gustavo, adoro imaginar versões alternativas para canções, principalmente mudando os intérpretes. E se Ella Fitzgerald cantasse Mercedez Benz? ;-)

Marcelo Soares disse...

De fato, falta uma criatividade musical em interpretação e reconfiguração das músicas mesmo.

Octavio Aragão disse...

Pois é, Marcelo.